quinta-feira, 22 de abril de 2010

Análise ao Ac STA 0701/09 de 11-03-2010: reclamação necessária?

O tema central do Ac STA 0701/09 de 11-03-2010 é a discussão acerca da natureza da reclamação, prevista para o procedimento para avaliação do desempenho na Lei nº10/04 e pelos Decretos Regulamentares nº19-A/04 e nº6/06. Torna-se indispensável esta análise, visto que se se considerar esta reclamação como necessária, como recurso impróprio, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local seria obrigado a impugnar administrativamente o acto e esperar pelo seu deferimento para ter acesso aos meios de impugnação contenciosa. Se, por outro lado, a reclamação for de natureza facultativa, nada impede a impugnação contenciosa do acto, ao abrigo do art.51º/1 CPTA. Posto isto, as questões do acto impugnado ser homologatório ou confirmativo e da admissibilidade do recurso de revista nesta matéria, serão tidas como pacíficas.

O acórdão debruça-se brevemente sobre a questão da constitucionalidade do recurso hierárquico necessário perante as normas do art.268ºCRP, alterado a partir da 2ª revisão constitucional em 1989. Explicando. Depois de 1989, o art.268º/4 passa a considerar como impugnáveis “quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares”, reforçando o princípio da efectividade da tutela. O recurso hierárquico necessário assentava nos requisitos de definitividade vertical e horizontal, que deixaram se ser mencionados com esta alteração. Isto é, deixou de haver uma consagração expressa da necessidade da utilização de vias de impugnação administrativa para aceder à via contenciosa (vertical) e da exigência que o acto tenha sido praticado no termo de uma sequência procedimental (horizontal). Os critérios agora previstos expressamente serão os da lesividade e da eficácia externa do acto, critérios adoptado pelo art.51º/1 e 3 CPTA.

Quer isto dizer que o recurso hierárquico necessário é inconstitucional por contrariar a norma do art.268ºCRP? Como sempre a doutrina diverge.

De um lado (Diogo Freitas do Amaral, José Carlos Vieira de Andrade) é dito que, apesar de ter sido eliminada a referência que constava no texto constitucional, a possibilidade de, para certos actos, o legislador ordinário poder exigir a definitividade do acto, através de previsão legal avulsa, continua aberta. O texto constitucional não tem que prever expressamente esta possibilidade, deixando ao critério do legislador como faz, aliás, quanto aos prazos de reacção contenciosa ou quanto ao patrocínio judiciário. Consideram, portanto, legítimo ao legislador condicionar o acesso à impugnação contenciosa em certos casos, desde que respeitadas as exigências de proporcionalidade e de adequação.

Por outro lado (Vasco Pereira da Silva, Paulo Otero) é afirmado que a substituição do requisito da definitividade vertical pela lesividade do acto tem o objectivo de admitir o direito ao acesso imediato aos tribunais perante uma decisão desfavorável. Direito este que Paulo Otero considera fundamental de natureza análoga a direitos, liberdade e garantias (18º/2 CRP). O Prof Vasco Pereira da Silva confirma que a revisão de 89 “afastou a noção autoritária de acto definitivo e executório, substituindo-a pela de acto administrativo lesivo de direitos dos particulares como critério de acesso ao meio processual do recurso de anulação”. Logo, a figura do recurso hierárquico necessário será inconstitucional. Mais, o art51º/1 e 3 admite a utilização de vias de impugnação administrativa para aceder à via contenciosa, ou seja, desapareceu a “necessidade” de recurso hierárquico. O CPTA revogará assim o CPA nas normas que se referem ao recurso hierárquico necessário.

Os Tribunais Administrativos e Constitucional vieram a considerar que não havia uma inconstitucionalidade com a previsão de recurso hierárquico necessário por várias ordens de razões.

Citando o Ac 4/06/2009, o acórdão em análise afirma: “o art.51º/1 CPTA, introduzindo um novo paradigma de impugnação contenciosa de actos administrativos lesivos, convive com a existência de impugnação administrativas necessárias, não só quando a lei o disser expressamente, como também em todos aqueles casos, anteriores à vigência do CPTA, que contemplavam impugnações administrativas, previstas na lei, comummente tidas como necessárias”.

Justifica-se dizendo que o próprio legislador do CPTA não quis nem no seu texto nem no seu preâmbulo decidir sobre previsões legais avulsas.

Igualmente, as regras anteriores à vigência do CPTA não são revogadas, no sentido de que lei geral não revoga lei especial. E, depois da vigência do CPTA, se previsão expressa ditasse a necessidade de impugnação administrativa como pressuposto da impugnação contenciosa, se desaplicaria a regra geral do CPTA.

Dito isto, claramente se percebe a importância, no caso, da determinação da natureza da reclamação. Para que, depois da vigência do CPTA, seja admissível recurso hierárquico necessário, na norma tem que estar expressa a escolha do legislador pela via da necessidade da impugnação administrativa. Não basta portanto que a figura da reclamação esteja prevista para ser necessária, tem que ser necessária pela sua natureza.

Pela apreciação feita pelo STA, é-nos dada a ideia que esta avaliação será feita caso a caso. Analisando esta reclamação em especial, o STA considerou-a como facultativa exactamente por não estar expressa a sua previsão e necessidade. Até porque a reclamação foi formulada perante o próprio autor do acto reclamado. Não faz sentido que o autor do acto possa ele próprio impedir a abertura da impugnação contenciosa não dando provimento à reclamação.

Retomando as razões para a opção pela não inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, temos a questão dos prazos para interposição de recurso. O art.59º/4 e 5 CPTA prevê a suspensão do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo e que essa mesma suspensão “não impede o interessado de proceder à impugnação contenciosa do acto na pendência da impugnação administrativa” (art.59º/5 CPTA). O entendimento tem sido que, pelo dito, nada impede que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de deferimento, recurso contencioso, não violando assim o direito de acesso aos tribunais administrativos (V. Ac STA 01865/02 de 16-02-2003). A precedência de recurso hierárquico tem apenas como efeito diferir o início do prazo do recurso contencioso.

Apesar de não ser muito relevante para o caso em acórdão, neste entendimento reside a verdadeira injustiça da previsão de recurso hierárquico necessário e, consequentemente, o grande argumento da sua inconstitucionalidade. Nesta interpretação não estão incluidos os casos em que o particular lhe vê negada a possibilidade de recurso contencioso por não ter interposto o recurso hierárquico necessário do acto lesivo no tempo para ele previsto. E isto mesmo nos casos em que os prazos para o recurso contencioso não tenham passado! Estamos perante uma manifesta violação do princípio da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares perante a Justiça Administrativa.

Em conclusão, este acórdão “aparece” na sequência de uma longa discussão que se estende desde 1989. Dando já como, de certo modo, estabelecido que o recurso hierárquico necessário não é inconstitucional e que se aplica no caso de haver previsão expressa, antes ou depois da vigência do CPTA, considera que a reclamação é de natureza de facultativa. Podemos dizer então que no panorama jurisprudencial é consensual que o recurso hierárquico necessário não é inconstitucional e a questão central é a de interpretação da natureza necessária ou facultativa das figuras (V. Ac STA 01255/09 de 14-01-2001; Ac STA 01521/02 de 11-10-2007). Isto apesar de não deixar, como vimos, de haver situações que contradizem directamente a constitucionalidade destes recursos. Atrevo-me a dizer que qualquer restrição ao acesso imediato à via contenciosa é um atentado directo aos direitos fundamentais e que a revogação dos preceitos que se referem ao recurso hierárquico necessário deveria acontecer simplesmente por princípio.



VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, p 199 – 217



JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª Edição, Coimbra, Almedina, p 207 – 230





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