terça-feira, 13 de abril de 2010

O reverso da medalha: a legitimidade processual dos contra-interessados nas acções administrativas comum e especial


No âmbito da segunda tarefa sobre legitimidade, decidi orientar o meu trabalho para o problema da legitimidade dos contra-interessados, da natureza da relação controvertida, da diferença em sede de acção administrativa comum ou especial e suas consequências processuais.
Assim, como definição introdutória, podemos designar os contra-interessados como “as pessoas a quem a procedência da acção possa prejudicar ou que tenham interesse na manutenção da situação contra a qual se insurge o autor, e que possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo” (ALMEIDA), denominação esta considerada como infeliz por Vasco Pereira da Silva que os considera como “sujeitos principais da relação jurídica multilateral, enquanto titulares de posições jurídicas de vantagem conexas com as da Administração (…)”.
Os contra-interessados constituem exemplo das chamadas relações horizontais, que pressupõem a consideração das posições relativas dos sujeitos privados, cujo desenvolvimento ou tutela careciam de alguma intervenção das autoridades administrativas. Trata-se, no fundo, de relações que contribuem para uma melhor compreensão da posição de sujeito privado nas normas de direito administrativo.
Contudo, nem sempre foi dada a devida atenção às relações horizontais, como bem relembra o alemão Rainer Wahl que, na época liberal, que se prolongou ao longo do século XX, o ordenamento jurídico público privilegiou as relações verticais entre a Administração e o sujeito de direito que desempenha um papel activo na sociedade, relegando para uma posição secundária quem, em contacto com aquele, defendia o “status quo”. Mas será no final desse século que a posição dos chamados terceiros começou a mudar.
Efectivamente, com o “crescimento” dos direitos fundamentais, principalmente no respeitante à sua dupla dimensão objectiva, passou-se a encarar os particulares, não como súbditos do poder do Estado, mas como contribuintes no procedimento e processo administrativo, ou seja, passaram duma posição passiva, de submissão ao poder da Administração, a uma posição activa, de participação no processo contencioso.
Com efeito, foi a “consciência desta necessidade de fazer dos intervenientes das relações multilaterais também sujeitos processuais”, como refere Vasco Pereira da Silva no seu manual “O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise”, que originou uma nova fase da legitimidade processual administrativa.
Foi assim que Portugal aderiu ao modelo germânico, cortando definitivamente com o modelo francês de cariz objectivista a que se mantinha acorrentado desde os tempos de Mouzinho da Silveira.
Avançando no tema do trabalho, a questão dos contra-interessados no processo administrativo tem sido analisada à luz do princípio do contraditório, ou seja, como forma de garantir a eficácia subjectiva do julgado, evitando-se situações indesejáveis de recurso extraordinário de oposição de terceiro. Cabe salientar, contudo, que mesmo no modelo francês de carácter objectivo (abandonado pelo nosso ordenamento), a “tierce opposition” é também admitida por questões de justiça.
A dificuldade reside, segundo Rui Chancerelle de Machete, em “encontrar uma justificação para a posição processual de terceiro que não se circunscreva à discricionariedade ou sensibilidade do juiz que entende dever dar um papel no processo àqueles que possam ser prejudicados pela impugnação do acto”.
O problema adensa-se relativamente à necessidade de o autor ter de saber determinar os sujeitos do litisconsórcio necessário passivo unitário (posição de Aroso de Almeida), logo no momento da proposição da acção, ou do recurso, sob pena de falta de legitimidade. Destarte, a jurisprudência portuguesa actual tem dado resposta a este problema, declarando que a “lei apenas torna obrigatória (sob pena de ilegitimidade passiva) a demanda dos contra-interessados que se saiba existirem pelo conhecimento que o autor tenha ou devesse ter “da relação material” – ou seja, de quem nela é parte, e igualmente de quem, nos factos da sua petição, ele reconheça titular de posições jurídicas beneficiadas pelo acto impugnado – ou através “dos documentos contidos no processo administrativo”, como defende M. Esteves de Oliveira, posição esta seguida pela jurisprudência, nomeadamente no acórdão do TAF do Porto 02527/05.9BEPRT de 26/06/2008.
Também no acórdão do TAF de Braga, nº 00859/04.2BEBRG de 01/06/2006, considerou o Mmº Juiz, com base num exemplo de outro acórdão (Processo 428/04.7BEPRT), que “não se vê como é que um cidadão comum, sem colaboração da entidade administrativa, poderia indicar os nomes e moradas de dezenas de milhares de docentes da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, inseridos nas competentes listas como candidatos ao concurso para preenchimento das vagas existentes que “Quando os contra-interessados sejam em número superior a vinte, o tribunal pode promover a respectiva citação mediante a publicação de anúncio, com a advertência de que os interessados dispõem do prazo de 15 dias para se constituírem como contra-interessados no processo” (sublinhado meu). Ou seja, só quando o número de contra-interessados for inferior a este número é que o autor deve chamá-los a juízo sob pena de ilegitimidade processual.
Assim considerar-se-á garantida, mediante a publicação, o respeito pelo disposto no artigo 57º CPTA, a garantia da legitimidade passiva e o regular funcionamento do processo.
Com o devido respeito, permito-me discordar do legislador acerca da obrigatoriedade da demanda dos contra-interessados pelo autor (art. 57º CPTA) e também da diferenciação quantitativa que o artigo 82º/1 consagra. Efectivamente, tratando-se os contra-interessados de verdadeiras partes no processo administrativo, titulares de direitos subjectivos não me parece proporcional que a sua participação no processo administrativo esteja pendente do “convite” do autor que instaurou a acção administrativa. Ou seja, no meu entender, a obrigatoriedade de demanda dos contra-interessados, ainda que com o objectivo louvável de tentar evitar que estes sejam ignorados do processo, não é o melhor método. Como se pôde constar do que foi dito nos acórdãos, é quase impossível para o cidadão comum recolher os nomes e moradas de todos os contra-interessados (muito provavelmente quase todos serão incógnitos para o autor) para o seu processo não cair em desgraça e ser considerado ilegítimo.
Deste modo, ao colocar-se o ónus da participação dos contra-interessados na mão do autor, não só se exige demasiado deste em termos processuais, como também se delimita o poder de actuação dos contra-interessados, do seu direito de participação administrativa que se vê vinculada à actuação diligente do autor.
Avançando para outro ponto do trabalho, levanta-se a questão de saber se podemos apurar se os contra-interessados defendem sempre uma posição jurídica ou um interesse de facto?! Nas palavras de Rui Machete “a fungibilidade de posições entre autor e contra-interessado nas relações poligonais ajuda igualmente a demonstrar que aquele pretende a tutela de uma situação jurídica e não actua como um ministério público do caso concreto”.
O CPA dá-nos uma resposta a esta questão, ainda que insuficiente, nos seus artigos 52º e 53º, mais propriamente no 53º, onde se considera ter legitimidade para iniciar procedimento administrativo todos os titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos. Contudo, considera-se esta resposta insuficiente, uma vez que a participação no procedimento administrativo, embora constitua uma presunção de legitimidade, não é por si suficiente, por poder não haver correspondência entre a relação procedimental e a questão em litígio, tal como vem consagrado no artigo 55º/3 do CPTA que considera uma “mera presunção de legitimidade para a sua impugnação” a intervenção do interessado no procedimento administrativo. É necessário, deste modo, encontrar justificação de direito material para a legitimidade passiva dos particulares que acompanham a Administração como partes principais na sua posição defensiva no processo contencioso.
O conceito de relação jurídica poligonal de direito substantivo, importada do direito alemão, justifica essa necessidade de legitimidade dos contra-interessados. Assim, a relação poligonal é regulada no programa da norma aplicável que arbitra em abstracto a repartição das vantagens e desvantagens entre as duas posições correlacionadas. O programa da norma exprime o objectivo e os meios necessários para o poder alcançar. E foi também através do direito alemão que se introduziu a ideia de “reversibilidade” que nos ajuda, actualmente, a entender a relação entre autor/contra-interessado. Esta reversibilidade permite traduzir as posições fundamentais de interesse na transformação e de interesse na conservação que subjazem nas relações poligonais entre os sujeitos privados envolvidos.
Assim, a título de exemplo, o vizinho que impugna uma licença de construção contrapõe-se, no mínimo, ao interesse do proprietário em cuja esfera jurídica a licença constituiu o direito de construir. Não estamos aqui perante meros interesses de facto. Aqui ambos são titulares de direitos subjectivos, cuja consistência jurídica é posta em causa nos processos de impugnação e condenação que consistem nos métodos mais adequados à tutela das pretensões dos titulares do interesse à mutação do “status quo” ou à sua manutenção.
Assim, nestas situações inter-relacionadas, a satisfação dos interesses de um titular implica necessariamente o desfavorecimento do outro. É o caso do exemplo supra de um pretender realizar a construção e o outro tentar impedi-la. Outro exemplo deste tipo de relações é a situação geral de concorrência. É o caso de A, proprietário de uma loja de motas que pretende anular a licença de exploração da mesma actividade pertencente a B. Nestes casos a homogeneidade dos interesses de todos os sujeitos particulares envolvidos é total e existe, também, uma completa inter-mutabilidade entre as posições processuais dos autores e dos contra-interessados.
Não se pode considerar, contudo, como defende Rui Machete, que exista uma relação jurídica concreta e directa de direito material entre o primeiro e o terceiro, entre o autor e o contra-interessado. A relação horizontal não está ao mesmo nível de concretização das relações verticais com a autoridade administrativa. No entanto, parece possível seguir, nas relações poligonais, um processo de individualização e concretização dos direitos subjectivos públicos dos particulares de que sejam titulares quer os autores, quer os contra-interessados, semelhante às posições dos particulares nas relações verticais com a Administração.
A reversibilidade dos papéis processuais de autor e contra-interessado autoriza a inferir não haver diferenças entre um e outro no que concerne aos pressupostos e meios de tutela judicial das situações de que são titulares e ao seu grau de efectividade.
O CPTA, depois de afirmar o princípio da tutela jurisdicional efectiva – artigo 2º/1 e 3 – consagra no artigo 10º/1 a posição dos contra-interessados, no âmbito da legitimidade passiva. Analisando esta norma, podemos concluir pela existência duma equivalência normativa com o artigo 26º do Código de Processo Civil (CPC), nomeadamente no seu nº 3 que diz: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”. A relação controvertida analisa-se, assim, entre duas posições subjectivas contrapostas.
Deste modo, a relação material controvertida entre autor/contra-interessado é a relação horizontal que se tentou caracterizar acima e que não consubstancia uma relação concreta, equivalente às relações verticais entre particulares e autoridades administrativas, mas antes o juízo comparativo de valoração realizado no plano normativo.
Assim, como já foi referido supra, o lado passivo – contra-interessados e autoridade administrativa – constituem uma situação de litisconsórcio necessário (a única situação no contencioso administrativo) justamente em virtude da existência do programa da norma que “une”, “enlaça” as posições materiais do autor e do réu.
O CPTA separa, de forma inequívoca, as figuras dos contra-interessados (10º/1, 57º, 68º/2) da dos terceiros (10º/8 + 320º e ss. CPC). Uma coisa são contra-interessados, outra completamente são os terceiros, mas não entrar, por motivos de gestão de tempo e espaço, nessa discussão.
Como já se sabe a divisão feita pelo CPTA entre acção administrativa comum e especial é feita com base no objecto do processo.
Deixando a acção comum, que já foi referida, passa-se à acção especial cuja sub-secção especialíssima da legitimidade vem consagrada nos artigos 55º-57º inclusive. O que nos interessa analisar é o artigo 57º que se refere expressamente aos contra-interessados. Tanto nesta norma como no artigo 68º/2 existe uma preocupação de densificação do conceito de contra-interessado e o cuidado de o circunscrever às pessoas que “possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”. Está aqui presente o propósito de “objectivizar” a operação de delimitação do universo dos “titulares de interesses contrapostos aos do autor” e que devem ser demandados em processo (10º/1).
Também o artigo 68º/2 expressa a relação material controvertida, uma vez que se reporta ao autor e contra-interessado, tem de ser entendida como uma relação horizontal constante do programa da norma a aplicar. Assim, se A pretende abrir uma farmácia e B se lhe opõe por ser titular de outra na mesma rua e a pretensão é denegada, A é o autor e B o contra-interessado. Mas, pelo contrário, se B - conhecedor do projecto de A abrir a farmácia - quiser defender-se por antecipação, deverá propor acção de negatória ao abrigo dos artigos 2º/c e 37º/2-c CPTA, assumindo A então a posição de contra-interessado. Deste modo verifica-se claramente a reversibilidade de posições processuais entre os dois particulares.
Assim, quem impugna um acto administrativo cita como contra-interessados os que na relação horizontal pretendam que o acto se mantenha, mas também pode acontecer que estes se adiantem (como no exemplo acima exposto) e pretendam que a autoridade administrativa se abstenha de revogar o acto praticado.
Em suma, o artigo 57º caracteriza os contra-interessados nos processos de impugnação da mesma forma que o 68º/2. Tanto num como noutro a relação material existente entre autor/contra-interessado tem de ser entendida como a relação horizontal constante do programa da norma que se aplicar na resolução do litígio. A relação horizontal dada pelo programa da norma permite a subjectivização da sua regulamentação nas posições dos particulares primeiros e terceiros, o que de outro modo deveria sempre ser dependente da discricionariedade do legislador. Quando a relação horizontal não existir, a relação jurídica controvertida consubstancia-se apenas entre o autor do acto e a autoridade administrativa, não havendo, assim, contra-interessados.
Cabe só salientar que o pressuposto processual da legitimidade não se confunde com o do interesse processual ou interesse em agir. Este último requisito não é questionável uma vez que deve ser tutelada a pretensão daquele que se vê forçado a defender-se por “reacção” contra intervenções que lhe serão desfavoráveis. Trata-se, porém, de uma distinção que não analisarei neste trabalho.
Por fim, entende-se por contra-interessados aqueles a quem o provimento do processo impugnatório possa prejudicar e, por conseguinte, têm um interesse individual e legítimo na manutenção do acto impugnado.
Mariana Pinto Ramos
Subturma 3 - nº 16773

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