quarta-feira, 21 de abril de 2010

Comentário ao Acórdão de 11/03/2010

Vários pontos merecem discussão no acórdão em análise.

Em primeiro lugar, o acto de homologação é (em abstracto) impugnável. Parece não se colocarem grandes dúvidas quanto a este ponto: como explica o Prof. Freitas do Amaral, e não obstante serem ambos actos secundários, a homologação distingue-se da aprovação precisamente porque antes de aquela ser praticada, “não existe nenhum acto administrativo: existe apenas uma proposta ou um parecer”; portanto, “o que fica a ser o acto administrativo é a homologação[1]. Mas seria impugnável o acto de homologação referido no Acórdão?

A discussão sobre a impugnabilidade dos actos administrativos vem a recair sobretudo, no entanto, sobre o acto confirmativo do Presidente da Câmara Municipal de Figueira da Foz, que assim indeferiu a reclamação do particular.

Ora, os vários intervenientes no processo entendem que a impugnabilidade de ambos os actos depende da existência, ou não, de reclamação necessária do acto de homologação. Cabe então perguntar, desde logo, se existe recurso hierárquico necessário, actualmente, no Ordenamento Jurídico português. O que traz de novo à baila uma discussão sem a qual os administrativistas nacionais já não podem passar.

Já antes da reforma, considerava o Prof. Vasco Pereira da Silva inconstitucional a regra do recurso hierárquico necessário, isto por ser contrário aos princípios da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (artº 268º/4 da CRP), da separação entre a Administração e a Justiça (artºs 114º, 205º e ss., 266º e ss.), da desconcentração administrativa (artº 267º/2) e da efectividade da tutela (de novo artº 268º/4)[2]. Também o Prof. Paulo Otero[3] considerou haver inconstitucionalidade.

Depois da reforma do regime do Contencioso Administrativo, considera o Prof. que a consagração da impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos (artº 51º/1 do CPTA), a atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas (artº 59º/4) e, por fim, o estabelecimento da regra segundo a qual, mesmo quando o particular utilizou uma garantia administrativa, beneficiando da consequente suspensão do prazo de impugnação contenciosa, tal não impede a possibilidade de imediata impugnação contenciosa do acto administrativo (artº 59º/5)[4], mostram que «o Código de Processo afasta inequívoca e definitivamente a “necessidade” de recurso hierárquico, como pressuposto de impugnação contenciosa dos actos administrativos»[5]. A meu ver, esta posição é correcta.

Tem opinião diferente, no entanto, a maioria da Doutrina portuguesa, e igualmente segue caminho diverso alguma jurisprudência. Assim, por exemplo, o Prof. Aroso de Almeida, subscrevendo um argumento muito usado pela jurisprudência, considerou não ser inconstitucional a exigência de recurso hierárquico porque “não cabe à Constituição estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação dos actos administrativos, em termos de se poder afirmar que eles só são legítimos se forem objecto de expressa previsão constitucional[6]. Ora, com o devido respeito, a meu ver, este argumento improcede porque é uma inadmissível inversão de raciocínio. Numa Constituição herdeira das concepções liberais e em que o princípio da repartição é determinante, não vejo como se pode justificar as restrições a um direito fundamental (artº 268º/4) dizendo apenas que elas não têm de estar previstas na Constituição para serem admitidas. É verdade que não têm, mas isso não justifica restrição nenhuma, apenas admite, em abstracto, que elas possam existir. Aquele raciocínio desconsidera o artº 18º/2 da CRP (e uma compreensão adequada do mesmo).

Quanto ao actual regime legal, considera o Prof. Aroso de Almeida, entre outros, bem como a maioria da jurisprudência, que, deixando de fazer qualquer referência ao requisito da definitividade, “o CPTA não tem (…) o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se consideram extintas[7].

A isto responde, e bem, o Prof. Vasco Pereira da Silva, do seguinte modo:

- não faria sentido a compatibilização da “regra geral” de admissibilidade de acesso à justiça com as referidas “regras especiais”, pois tal significaria continuar a fazer relevar exigências procedimentais que permitiam preencher um pressuposto que desapareceu do CPTA (pois agora apenas se exige, para o que aqui interessa, que o acto “seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”: artº 51º/1)[8];

- as “normas especiais” não o podem ser verdadeiramente, visto que, antes da reforma, eram apenas a confirmação da “regra geral”, pelo que se devem considerar revogadas, do mesmo modo que aquela[9];

- falei em revogação mas, na verdade, o problema é de caducidade: “se (…) a única razão de ser da exigência do recurso hierárquico necessário era a de permitir o acesso ao juiz, e se, agora, o Código de Processo estabelece que tal garantia prévia não é mais um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, então isso só pode significar que a exigência do recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, pelo que se deve considerar que (…) tais normas caducam[10];

- depois da revisão constitucional e consequente concretização legal, não se percebe a intenção de trazer a “ressurreição” da categoria das “relações especiais de poder”, agora ao nível do Contencioso Administrativo, em face da “criação de um regime de impugnação específico para certas categorias de actos, à margem dos direitos fundamentais, da Constituição e do Código de Processo Administrativo”, pelo que “[não] podem deixar de ser consideradas como incompatíveis com a Constituição, por violação do conteúdo essencial do direito fundamental de acesso à justiça administrativa”, quaisquer “normas especiais” que prevejam o recurso hierárquico necessário[11];

- por último, concretizando o princípio da promoção do acesso à justiça (artº 7º), o legislador consagrou a regra segundo a qual devem ser evitadas “diligências inúteis” (artº 8º/2), donde se retira, igualmente, a desrazoabilidade de qualquer exigência legal de recurso[12];

No acórdão aqui em análise, o STA, no entanto, pronunciou-se num sentido concordante com a posição de Aroso de Almeida, subscrevendo os argumentos utilizados anteriormente pela jurisprudência. Assim, começa por considerar que a necessidade das impugnações administrativas não pode ser havida como uma restrição ao direito de acção, na medida em que este pode “ser exercido, posteriormente, contra o acto reclamado no caso de não ter havido pronúncia autónoma do órgão recorrido sobre ele ou, mediatamente, no caso em que ele fosse incorporado no acto que decidisse a impugnação administrativa.” Este argumento não procede: basta ver que o prazo das garantias administrativas (168º/1 do CPA: 30 dias em geral, podendo até ser menos), sendo menor que o de impugnação contenciosa (58º/1 e 2, al. b) do CPTA), sempre resultaria, na prática, numa restrição do direito do particular.

De seguida, aceita que existirá recurso hierárquico necessário quando lei posterior à reforma o preveja. Ora, pelo que disse antes, quando transcrevi a posição do Prof. Vasco Pereira da Silva, é de recusar tal entendimento.

Por último, quanto às previsões legais anteriores à reforma, e que, segundo Vasco Pereira da Silva, caducaram (pelo menos no que respeita à exigência de recurso hierárquico necessário), considera o tribunal que este entendimento “constituiria uma verdadeira fraude para o legislador que foi emitindo normas com base no pressuposto, aceite pela generalidade, de que a mera previsão legal de uma impugnação administrativa, sem outra qualquer menção, tornava-a necessária.” Ora, este raciocínio denuncia, quanto a mim, um vício metodológico. Não é admissível uma “interpretação particular” para estas normas só porque o legislador, na altura da sua produção, levou em linha de conta pressupostos que já não se verificam. Pois se, precisamente, deixaram de se verificar, tal significa que essas normas caducaram. Contra aquela proposta “interpretação privativa”, recorde-se as palavras de Santi Romano: “o que vulgarmente se chama interpretação da lei […] é sempre interpretação, não de uma lei ou norma singular, mas de uma lei ou norma que se examina atendendo à posição que ocupa no ordenamento jurídico em globo: o que quer dizer que o que efectivamente se interpreta é esse ordenamento e, como consequência, a norma singular[13]. Ou, mais simplesmente, nas palavras de Oliveira Ascensão, “é um princípio básico que o sentido de cada parte é condicionado pelo todo em que se integra.”[14] Ou seja, não faz sentido fingir que um existe um pressuposto legal só para salvar certas normas, quando o restante ordenamento o recusa…

Portanto, e aproveitando a onda psicanalítica em que embarcámos nesta disciplina, traçando um paralelo neurológico, diria que o Contencioso Administrativo português tem um problema semelhante ao d’”o homem que caiu da cama”, relatado por Oliver Sacks[15]: esse homem acordou um dia e, vendo que tinha uma perna na cama, empurrou-a. Como ela não se afastava, foi empurrando-a até cair da cama e perceber que a perna era sua. Ora, o Contencioso bem se vai tentando libertar da perna que tem na cama – isto é, o recurso hierárquico necessário – mas, por mais que empurre, ele não se vai embora, de tal forma já é parte de si…

Quanto aos aplicadores do Contencioso Administrativo, a sua situação assemelha-se à da senhora O’C: esta senhora, a partir de dada altura da sua vida, ouvia, na cabeça, música irlandesa, que por meio nenhum conseguia fazer cessar[16]. Os aplicadores do Contencioso Administrativo também se deparam com dificuldades para desligar a música francesa, que ainda o vai marcando, aqui e ali.

Assim sendo, a meu ver, o tribunal não poderia ter concluído pelo carácter imperativo da reclamação em causa (enquanto pressuposto da impugnação contenciosa). Esta conclusão seria de reiterar, parece-me, mesmo que se aceitasse a referida posição dos Profs. Vieira de Andrade, Aroso de Almeida e maioria da jurisprudência. Isto porque, mesmo admitindo – sem conceder – a existência de “casos-excepção” em que se exigiria o recurso hierárquico para poder haver impugnação contenciosa, este não seria um desses casos.

Isto porque a reclamação aparece, na legislação em causa, como facultativa. De facto, tendo sido produzida após a reforma de 2004 – como, de resto, se diz no acórdão – a lei em causa sempre teria de prever diferentemente, caso a intenção fosse a de exigir a reclamação para possibilitar o acesso aos tribunais. Porque se, nesta visão, a “regra geral” seria a da não exigência de recurso hierárquico, então a “norma especial” sempre teria de especificar essa mesma imperatividade. Caso contrário – apenas prevendo o recurso/reclamação e não os qualificando como necessários –, essa reclamação estará sujeita à “regra geral”, e nenhuma especificidade haverá a apontar. Ou seja, e ao contrário do que diz o STA, não há problema quando o Decreto-Regulamentar nº 19-A/2004 diz que o particular “pode apresentar reclamação” e a lei regulamentada não o faz. Problema haveria, isso sim, se o Decreto-Regulamentar previsse que o particular “deve” apresentar reclamação e a lei regulamentada não o fizesse.

Há ainda um último ponto que, a meu ver, merece referência.

Mesmo considerando que a reclamação era facultativa, penso que seria de aceitar a impugnação contenciosa do despacho de indeferimento da mesma. Isto porque me parece que a impugnabilidade contenciosa da decisão confirmativa não depende do carácter necessário do recurso gracioso.

É opinião comum na Doutrina, e assim decidiu, de resto, o tribunal de cuja decisão se recorreu: o acto confirmativo, num caso como este, não seria impugnável, ou sê-lo-ia apenas em cumulação com o primeiro acto praticado (neste caso, o acto de homologação), porque se limitou a manter o acto recorrido, não alterando o status quo vigente, nem introduzindo efeitos jurídicos novos. Ora, a meu ver, tal solução não é de perfilhar. Desde logo, porque nem o artº 120º do CPA nem o artº 51º/1 do CPTA limitam os conceitos de acto administrativo e acto administrativo impugnável aos actos que introduzam efeitos jurídicos. Poderá tratar-se de resquícios de concepções do acto administrativo com origem na Doutrina de Coimbra[17] (sobretudo), mas que não encontram base legal.

Depois, o artº 53º admite expressamente a impugnação de actos meramente confirmativos. Nenhuma das hipóteses em que tal se proíbe (previstas nas alíneas do referido artigo) se verifica na situação em análise. Assim sendo, o acto de indeferimento da reclamação do particular seria impugnável.

A isto é de acrescentar que o referido acto do Presidente da Câmara Municipal tinha de ser fundamentado, de acordo com o artº 124º/1, al. b) do CPA. Portanto, não está apenas em causa uma “assinatura por baixo” de um acto já praticado: há fundamentos que podem ser impugnados.

A isto se pode responder – e concordo – que sempre seria mais aconselhável e expectável o particular impugnar a homologação. Mas utilidade não significa obrigatoriedade.

Uma última nota para referir que seria de equacionar – admitindo que o acto de indeferimento, como disse, poderia ser impugnado – a possibilidade de o tribunal convidar o autor a substituir a petição, “para o efeito de formular o adequado pedido de condenação à prática do acto devido” (artº 51º/4). Ora, não me parece que tal solução seria correcta, mas, para não me alongar mais, direi apenas que, ainda aí, sempre seria melhor para o particular este “convite” do juiz do que ver o tribunal considerar inimpugnável o acto que leva a juízo – o acto de indeferimento da reclamação.

António Brito Neves



[1] Diogo Freitas do Amaral, «Curso de Direito Administrativo – Vol. II», 6ª reimpressão da edição de 2001, Almedina, 2006, p. 266

[2] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, pp. 348 e 349

[3] Paulo Otero, “As garantias impugnatórias dos particulares no Código de Procedimento Administrativo”, Scientia Ivridica, vol. XLI (nº 235/237), pp. 58 segs.

[4] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, pp. 350-353.

[5] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, p. 350.

[6] Mário Aroso de Almeida, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», reimpressão da 4ª edição de Junho/2005, Almedina, 2007, p. 148.

[7] Mário Aroso de Almeida, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», reimpressão da 4ª edição de Junho/2005, Almedina, 2007, p. 147.

[8] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, pp. 355-356.

[9] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, pp. 356-357.

[10] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, pp. 357-358.

[11] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, pp. 358-360.

[12] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009, p. 360.

[13] Santi Romano, «Framenti di un dizionario giuridico», Milão, 1953, p. 124.

[14] Oliveira Ascensão, «O Direito – Introdução e Teoria Geral», 13ª edição, Almedina, 2005, p. 393.

[15] Oliver Sacks, «O Homem Que Confundiu a Mulher Com Um Chapéu», Relógio d’Água, 1985, pp. 78 segs.

[16] Oliver Sacks, «O Homem Que Confundiu a Mulher Com Um Chapéu », Relógio d’Água, 1985, pp. 166 segs.

[17] Por ex, Rogério Soares, «Direito Administrativo», lições policopiadas, Coimbra, 1978, pp. 51 segs.

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