sexta-feira, 16 de abril de 2010

Recurso Hierárquico Necessário ou “Desnecessário”?

Tem sido objecto de grande controvérsia na doutrina a questão de saber se a definitividade vertical do acto administrativo constitui, ou não, um requisito para que o acto possa ser impugnável, ou seja, se a impugnação contenciosa de um acto administrativo está dependente da prévia utilização pelo impugnante da via de impugnação administrativa, mais concretamente, da interposição de recurso hierárquico necessário ou ,se pelo contrário, há uma possibilidade de controlo judicial imediato dos actos dos subalternos.
Segundo o Professor Freitas do Amaral, a aceitação da definitividade vertical implica considerar que, em principio, “dos actos do subalterno não cabe recurso directo para os tribunais administrativos”, tendo o particular lesado, “ primeiro necessariamente de recorrer para o superior hierárquico e só da decisão deste é que pode recorrer para um tribunal”.
Não há dúvidas que o CPTA não exige, em temos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de previa impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa.
Tal conclusão podemos retirar da leitura dos artigos 51ºnº1 e 59ºnº4 e 5 CPTA, de onde resulta, claramente, a regra de que a utilização da via de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa.
Até a revisão Constitucional de 1989, conferia-se aos particulares direito de recurso contencioso contra actos administrativos definitivos e executórios, o que levou à tradicional dicotomia entre recursos hierárquicos necessários e recursos hierárquicos facultativos.
Com a revisão Constitucional de 1989, o artigo 268º deixou de fazer referência à necessidade de o recurso contencioso ser interposto contra actos definitivos e executório e dispõe que passaram a ser recorríveis “quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares”.

Importa, antes de mais, averiguar se as disposições legais que estabelecem o recurso hierárquico necessário são ou não inconstitucionais por violação do artigo 268ºnº4 da CRP.
A resposta a dar a esta questão, não é de todo pacífica na doutrina.
Há quem entenda, que a alteração constitucional de 1989, ao substituir o requisito da definitividade vertical pela lesividade do acto, tornou inconstitucional a figura do recurso hierárquico necessário, como “bilhete de ingresso” nos tribunais administrativos.
Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, as disposições legais que estabelecem o recurso hierárquico necessário são inconstitucionais, nomeadamente, por violação do princípio Constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (artigo 268ºnº4 da CRP), na medida em que ao ser inadmissível o recurso contencioso, quando não tenha havido, previamente, recurso hierárquico necessário, há uma negação de um direito fundamental de recurso contencioso.
Como entende o Professor Vasco Pereira da Silva “ é a necessidade de assegurar uma protecção plena e eficaz dos particulares perante a Administração que faz com que a CRP abandone a clausula restritiva clássica dos actos definitivos e executórios, para passar a aferir a recorribilidade em razão da lesão dos direitos dos particulares envolvidos com a Administração numa relação jurídica administrativa” ( “Em Busca do Acto Administrativo Perdido”).
Em sentido contrário, o Professor Mário Aroso de Almeida e Rogério Soares, rejeitam este argumento da inconstitucionalidade da imposição de impugnações administrativas necessárias, com o argumento de que não cabe à CRP estabelecer os pressupostos que se têm de verificar para que se possa impugnar os actos administrativos, pelo que é tarefa do legislador ordinário regular o processo administrativo, podendo, estabelecer como pressuposto processual a impugnação administrativa prévia.
O acórdão do Tribunal Constitucional nº 499/96 pronunciou-se, igualmente, no sentido da não inconstitucionalidade da exigência de recurso hierárquico necessário, entendendo que “Não se pode concluir, porém, que seja hoje inconstitucional qualquer exigência de recurso hierárquico necessário. Quando a interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso, não terá sido violado o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é conformado pelo artigo 268º, nº 4, da Constituição. Nesta situação, a precedência de recurso hierárquico tem como efeito determinar o início do prazo para a interposição de recurso contencioso, sem o restringir nem acarretar a sua inutilidade. Estará em causa, simplesmente, uma ordenação do processo jurisdicional (…).”
No mesmo sentido, da não inconstitucionalidade, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão 0701/09 de 11/03/2010, onde entendeu que “a necessidade destas impugnações administrativas nem sequer podia ser havida como uma restrição ao direito de acção na medida em que este podia ser exercido, posteriormente, contra o acto reclamado no caso de não ter havido pronúncia autónoma do órgão recorrido sobre ele ou, mediatamente, no caso em que ele fosse incorporado no acto que decidisse a impugnação administrativa”.
Na minha opinião, sem dúvida alguma, a exigência de prévio esgotamento das garantias administrativas como condição necessária do acesso aos tribunais é inconstitucional.
Vejamos, a título de exemplo, o caso prático II das páginas 23 e 24 do livro “ O Processo Administrativo em Acção”, resolvido nas aulas práticas.
Resulta da hipótese prática que o particular, interpôs recurso hierárquico do despacho da DREL que lhe aplicou pena disciplinar de inactividade por um ano.
Contudo, tal recurso foi rejeitado por extemporâneo (note-se que nos termos do artigo 168ºnº1 do CPA, o prazo para a interposição do recurso hierárquico necessário é de 30 dias).
Assim, se entendermos que o recurso hierárquico previsto no artigo 75º nº8 do Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, é um recurso hierárquico necessário, então, na medida em que o particular deixou passar o prazo dentro do qual o poderia interpor, nunca irá obter um acto impugnável necessário para que possa impugnar contenciosamente o acto.
Se seguíssemos este entendimento, então a interposição do recurso hierárquico condiciona a efectivação do recurso contencioso, pelo que se o recurso hierárquico não é interposto, o recurso contencioso irá ser, consequentemente, rejeitado com o fundamento na falta de carácter definitivo do acto recorrido; ou se o recurso hierárquico é interposto fora do prazo que a lei impõe, o recurso ira ser igualmente rejeitado por extemporâneo, ou seja, com o fundamento na falta de pressuposto relativo à sua oportunidade.
Esta solução, na minha opinião, é chocante, na medida em que se traduz numa limitação ao direito fundamental previsto no artigo 268º nº4 da CRP, que determina que “ É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (…)”.

O artigo 51ºnº1 do CPTA determina a impugnabilidade dos actos em razão da sua eficácia externa (ou seja, que afecte um destinatário fora da administração) ou da lesão dos direitos dos particulares, e afasta expressamente a exigência de recurso hierárquico necessário.
Como sustenta o Professor Vasco Pereira da Silva, para o particular vale a pena solicitar, previamente, uma “segunda opinião” por parte da Administração, na medida em que não vê precludido o seu direito de impugnação contenciosa pelo decurso do prazo.
Assim, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva “o recurso hierárquico, tal como as demais garantias administrativas, passaram a ser sempre “desnecessárias”, mas tornaram-se agora sempre “úteis”.
São úteis, na medida em que o artigo 59ºnº4 do CPTA, atribui efeito suspensivo ao prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo com a utilização de garantias administrativas.
No artigo 59ºnº5, o CPTA, estabelece a regra segundo a qual, mesmo nos casos em que o particular utilizou previamente as garantias administrativas e beneficiou da consequente suspensão do prazo de impugnação contenciosa, isso não impede a possibilidade imediata de impugnação contenciosa do acto administrativo.
Desta disposição, podemos retirar, mais uma vez, o afastamento da necessidade do recurso hierárquico, bem como de qualquer outra garantia administrativa, na medida em que será sempre possível ao particular aceder de imediato à via contenciosa, independentemente de ter usado ou não a via graciosa.

Cabe agora, indagar se nos dias de hoje ainda há, ou não, casos em que é exigido o recurso hierárquico necessário como recurso pré-contencioso, ou seja, preliminar indispensável de acesso aos tribunais.
Encontramos na doutrina e na jurisprudência, duas soluções para esta questão.
O Professor Mário Aroso de Almeida, entende que é pacifico que “o CPTA não exige, em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa”, contudo, o CPTA não tem, “o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se consideravam extintas”. O professor Mário Aroso de Almeida faz uma interpretação restritiva do regime, segundo o qual haveria uma revogação da regra geral da exigência de recurso hierárquico necessário, mas tal não implica a revogação das eventuais regras especiais, que consagrem tal exigência.
Deste modo, na opinião do Professor Mário Aroso de Almeida,que tem subjacente a rejeição do argumento da inconstitucionalidade de imposição de impugnações administrativas necessárias, “ os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa”. No entanto, entende que “ as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei”.
O mesmo entendimento foi seguido pelo Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente no acórdão 0701/09 de 11/03/2010, em que entendeu que, não obstante o artigo 51º nº1 do CPTA, determinar que todo o acto administrativo com eficácia externa podia ser imediatamente e judicialmente impugnado, sendo, desnecessário o prévio esgotamento da via administrativa como forma de o sindicar contenciosamente, não afasta definitivamente a necessidade da reclamação administrativa como via de abertura dos meios contenciosos.
Dito de outra modo, continuam a existir impugnações administrativas necessárias, não só quando a lei o disser expressamente, como também em todos aqueles casos, anteriores à vigência do CPTA, que contemplam impugnações administrativas, previstas na lei, como necessárias.
Como argumento justificativo, para a circunstância de o CPTA não ter querido revogar as disposições legais avulsas existentes que obrigam a que, previamente, à impugnação judicial do acto dele se reclame administrativamente, invoca o facto de nem no seu preâmbulo, nem no seu texto, este diploma ter tomado posição expressa sobre essas disposições legais avulsas, de onde retira que ele pretendeu que tais disposições legais avulsas continuassem em vigor.
Assim, o STA, neste acórdão entendeu que “a regra geral contida no transcrito preceito do CPTA era inaplicável sempre que houvesse determinação legal expressa, anterior ou posterior à sua entrada em vigor, que previsse a necessidade de impugnação administrativa como pressuposto da impugnação contenciosa”, ou seja, “ apenas são admissíveis impugnações administrativas necessárias, após a vigência do CPTA, quando a lei o disser expressamente. Quanto às anteriores, só devem considerar-se necessárias aquelas cuja existência estivesse prevista na lei e fossem tidas (pela jurisprudência), por isso, como necessárias.”
Com esta solução, entende-se que o legislador quis, que a resolução de litígios pudesse ser feita ou, pelo menos, tentada no seio da Administração e que só perante o insucesso desta tentativa se podia recorrer a Tribunal, evitando, assim, o congestionamento dos Tribunais.

Contrariamente, o Professor Vasco Pereira da Silva, não defende esta interpretação restritiva. Na sua opinião, sendo a impugnação de quaisquer actos administrativos lesivos de direitos dos particulares um direito fundamental de acesso à justiça de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, tal não pode ser restringido pelo legislador por força do artigo 18ºnº2 da CRP.
Deste modo, o Professor Vasco Pereira da Silva, entende que caducaram por inconstitucionalidade superveniente, as previsões anteriores à revisão constitucional de 1989 que impunham a interposição de recurso hierárquico necessário como condição de acesso à via contenciosa, e que são originariamente inconstitucionais as criadas posteriormente.

De tudo o que foi exposto, entendo, na esteira do Professor Vasco Pereira da Silva que todas as normas que prevejam a necessidade de recurso hierárquico necessário, ou de qualquer outro meio gracioso, caducaram, considerando que todas as garantias administrativas são “facultativas”, na medida em que, não impedem o particular de utilizar imediatamente, ou simultaneamente, a via contenciosa, além de terem um efeito suspensivo dos prazos de impugnação contenciosa.
Desde modo, um particular que se encontre lesado por um acto administrativo, tem três alternativas:

1.) Ou recorre exclusivamente à impugnação contencioso, através de uma acção administrativa especial, acompanhada ou não do respectivo pedido cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo;
2.) Ou procede à prévia impugnação administrativa do acto, gozando do efeito geral da suspensão do prazo de impugnação contenciosa e, só depois, em função do resultado da garantia administrativa, utiliza ou não a via contenciosa;
3.) Ou Impugna hierarquicamente a decisão administrativa, que goza do efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa, mas tendo a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal, sem ter necessidade de esperar pela decisão do recurso hierárquico.

Concluíndo, se é certo que a exigência da definitividade vertical do acto, constituiu um pressuposto processual de acesso aos tribunais administrativos durante vários anos entre nós,parece que a mesma necessidade já não impera nos dias de hoje nas disposições do nosso código, pelo que é possível impugnar contenciosamente os actos que sejam lesivos de direitos de particulares ou que tenham eficácia externa( artigo 51ºnº1 do CPTA), sem necessidade de se recorrer à prévia impugnação administrativa.

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