sábado, 24 de abril de 2010

“Necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais!”

Ainda a “impugnação administrativa necessária” e o Acórdão n.º 0701/09 do STA a 11 de Março de 2010


O acórdão que nos serviu de ponto de partida veio lembrar que “no procedimento para avaliação do desempenho regulamentado pela Lei n.º 10/04 e pelos Decretos Regulamentares n.º 19-A/04 e n.º 6/06 está prevista a existência de reclamação, à qual se seguirá recurso hierárquico, e sendo que estes diplomas são posteriores à entrada em vigor do CPTA é forçoso concluir que a reclamação neles prevista é necessária.”

Esta ideia de esgotamento das vias de interpelação administrativa antes da possibilidade de escolha da via contenciosa choca com a tese defendida por Vasco Pereira da Silva que encontra na lógica do CPTA uma desnecessidade de impugnação prévia na via administrativa (segundo este Professor, se tanto teremos um “recurso hierárquico útil” – pelo regime do art. 59.º/1 do CPTA “ganha-se prazo” – convivendo com a possibilidade do particular poder desistir de esperar pela Administração.

Assim, a posição do Regente da Cadeira é simples: o particular, perante um acto do subalterno tem três hipóteses - (1) impugnação contenciosa directamente do acto; (2) usar a garantia administrativa, “antigo recurso hierárquico necessário”, impugnação administrativa do prazo, suspendendo-se os prazos e (2.1) espera pela resposta da administração; (2.2) impugna directamente sem esperar.

Vasco Pereira da Silva, a propósito do direito fundamental a uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, consagrado no artigo 268.º/4 da CRP, concebe-o como “pedra angular” e leva esse direito à sua extensão máxima (veja-se, a propósito deste tema, a discussão com Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida), pretendendo superar os “traumas da infância” com uma “emancipação antecipada” que até impressiona pela necessidade de negar a necessidade do recurso escudada na Constituição – ainda que a alteração de paradigma operada pelas mais recentes alterações legislativas tenha feito o “recurso hierárquico necessário” entrar em “vias de extinção” (não entraremos no problema da “mega-revogação” das normas que consagravam recursos hierárquicos necessários antes apenas confirmando e, agora, eventualmente, excepcionando, a regra geral), não nos parece ser este caminho contrário à Constituição.

Concordamos com a posição de Vieira de Andrade , contra Salgado Matos , que não encontra na eventual consagração legal deste pressuposto uma contrariedade ao art. 268.º/4, apenas um “condicionamento legítimo do direito de acção contra actos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos” – não estamos, sequer, perante uma restrição, dado que não impede o exercício posterior do direito de acção contra aquele mesmo acto, seja quando não haja pronúncia autónoma do órgão recorrido, seja mesmo quando haja acto expresso que decida o recurso” – remetendo-nos depois para outros Acórdãos do STA no mesmo sentido daquele que nos serviu de ponto de partida.

Parece-nos, então, que a questão se coloca em vários planos (e evite-se a discussão de saber se existe ou não alguma regra que consagra um recurso hierárquico necessário – será, certamente, excepcional).

Em primeiro lugar, os “traumas de infância” do Contencioso Administrativo, e a (bem) abandonada “presunção” de que a Administração decidia bem, não devem dar lugar a uma presunção contrária. A ideia repetida de que o superior irá confirmar o acto não deve ter-se como aceite, ainda mais quando for evidente que o acto ofende e deve ser impugnado. Não apenas os custos (monetários e de “entupimento dos tribunais”), mas também a lógica lembrada por Vieira de Andrade de que os meios de impugnação administrativa “quando a lei os considere ‘necessários’” são informais e permitem uma interposição mais fácil, barata e rápida são argumentos para ir para além da “utilidade” do recurso. Defender a contrariedade à Constituição é, não apenas optar por esta presunção de que a Administração confirma o que decide mal (ainda que apenas subliminarmente), como negar a legitimidade de um condicionamento que parece perfeitamente legítimo.

Como se o “direito ao voto” implicasse levar a sua concretização ao máximo – com mesas de voto abertas 24 horas por dia e a receber votos de qualquer eleitor em qualquer ponto do país.

Perceber se o núcleo do direito fundamental a uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, consagrado no artigo 268.º/4 da CRP é tocado se houver em algum caso a consagração (excepcional - seja nos casos antigos que Aroso de Almeida, Freitas do Amaral e Vieira de Andrade ainda aceitam; seja nos eventuais “casos novos”, como este que se parece encontrar no Acórdão) de recursos hierárquicos necessários é a questão que nos ocupa.

Então, lembremos o que escrevem os Juízes do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito dos regimes dos artigos 13.º e 14.º da Lei 10/04 e dos artigos 22.º, 28.º e 29.º do Decreto-Regulamentar 19-A/04: “o legislador quis que, numa primeira fase, a resolução do litígio pudesse ser feita ou, pelo menos, tentada no seio da Administração e que só perante o insucesso desta tentativa se podia recorrer a Tribunal”. Este parágrafo só parece confirmar a ideia de que temos “novos recursos hierárquicos necessários”.

Ainda, o “Acórdão do Pleno foi claro ao afirmar que o novo paradigma de impugnação contenciosa dos actos administrativos lesivos introduzido pelo art.º 51.º/1 do CPTA não determinou a revogação das normas existentes em diplomas avulsos que previssem, em termos expressos, a existência reclamações graciosas inseridas num determinado procedimento. E que, por ser assim, e, salvo disposição em contrário, tais reclamações continuaram a ser necessárias para a abertura da via contenciosa. Ora, in casu, essa norma revogatória não existe”- a posição do Supremo é, também aqui, clara, optando pela posição contrária à de Vasco Pereira da Silva. Não querendo tomar posição nesse debate, não deixamos de questionar a facilidade com que o Tribunal toma esta posição sem argumentar nesse sentido, desmontando a eventual “revogação tácita” introduzida pelo 51.º/1 do CPTA – remetemos a leitura desses argumentos para os locais indicados, nas obras dos Professores já referidos.

Por fim, decidem os Juízes: “nesta conformidade, é forçoso concluir que a reclamação prevista nos transcritos normativos é necessária e que, por isso, a mesma constitui pressuposto processual do uso de ulterior meio judicial de impugnação”.
Tendemos a concordar que, neste caso, deverá entender-se existir uma reclamação necessária e que, por tudo o que tem sido dito, ainda que sinteticamente, não choca com o direito fundamental em análise. Afinal até o processo executivo civil pressupõe um processo declarativo civil, ou, pelo menos um título executivo que, para ter exequibilidade poderá carecer de prévia interpelação do executado.

O artigo 51.º/1 do CPTA desenha um princípio geral em que não há recurso hierárquico necessário e, com esse princípio, aumenta o catálogo de actos administrativos impugnáveis e até, acreditamos, garante melhor a tutela plena e efectiva prevista no artigo 268.º/4 da CRP. No entanto, é um princípio e não uma regra (lembremos a repetida distinção de Alexy e, entre nós, David Duarte) e é uma opção de um legislador que não foi claro na extensão que queria dar ao âmbito de aplicação dessa norma.

Quanto à invocação dos números 4 e 5 do artigo 59.º do CPTA nesta discussão parece-nos despropositada. Se o regime do número 4 confortará aqueles que encontram nas eventuais reclamações necessárias, caminhos lógicos (afinal os prazos suspendem-se!), bastará para que outros apenas aí vejam uma regra sobre “recursos hierárquicos úteis”. E o regime do número 5, que poderá servir para sustentar uma “desnecessidade geral” de recursos hierárquicos, poderá ser uma mera concretização, quanto aos prazos, da regra geral do artigo 51.º do CPTA, devendo verificar-se, em cada caso, se haverá algum outro impedimento (que não a suspensão de prazos do número 4) que impeça os interessados de procederem à impugnação contenciosa dos actos na pendência de impugnação administrativa.

É neste espaço – o tema dos prazos – que encontramos maior extensão para o problema do direito fundamental a uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, consagrado no artigo 268.º/4 da CRP, em cada caso deveremos compatibilizar regimes que não foram totalmente alterados e tornados compatíveis (lembre-se a solução que avançámos em aula prática para “salvar a conformidade à Constituição de recursos hierárquicos necessários” – aplicando os prazos do 58.º CPTA aos prazos para impugnação de actos com eventual regime de recurso hierárquico necessário – esta construção partirá, e carecerá de desenvolvimentos, dos artigos 268.º da CRP, 9.º do CC, e de outras regras de interpretação conforme à Constituição que poderemos desenvolver noutro local).

Assim, não encontramos qualquer imposição constitucional de afastamento dos “recursos hierárquicos necessários” e vemos até com muito pesar essa alteração de paradigma, como o adolescente que passa a presumir que os pais estão sempre enganados e não o compreendem. Isso é mau para a Administração, mau para o Contencioso Administrativo e mau para os particulares.

Como cantava o urso Balu no filme “O Livro da Selva” – “necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais” – também assim devem os particulares encontrar a via contenciosa, como extraordinária. E, muitas vezes, é demais (em todos os sentidos!).

Abril de 2010
Miguel da Câmara Machado
(sub-turma 10, aluno n.º 16791)

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