domingo, 18 de abril de 2010

O QUE EXIGE O TRIBUNAL AO ACTO ADMINISTRATIVO?

BREVE REFLEXÃO SOBRE O CRITÉRIO DE IMPUGNABILIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO

Como será de prever, esta matéria da impugnabilidade no contexto do contencioso administrativo, revestindo-se da maior importância em termos da prática da Justiça, já foi objecto de muitas páginas de doutrina. Evidentemente, o meu grau de especialização neste ramo de direito não permite atingir um nível argumentativo tão forte como aquele que caracteriza os ilustres mestres administrativistas, mas tentarei apenas transmitir a minha humilde perspectiva.

Verdadeiramente, o tema da impugnabilidade do acto administrativo, sendo um pressuposto processual, merece uma profunda análise, sob pena de se poder estar a comprometer o direito de acesso ao direito e à justiça (20º/1 CRP).
No âmbito da acção administrativa especial (46º e seguintes), enquanto forma de processo própria do contencioso administrativo, existem várias modalidades processuais derivadas da natureza própria dos diferentes tipos de pretensões – embora não sejam objecto de autonomização enquanto processos especiais. Ora, a modalidade que será parcialmente objecto de estudo será a que se denomina por Impugnação de actos administrativos, regulada no artigo 50º e seguintes.

Um dos pressupostos processuais desta impugnação é, precisamente, a impugnabilidade do acto (ou actos) administrativo cujos efeitos jurídicos se pretende destruir, total ou parcialmente, em juízo. O artigo 51º/1 CPTA é a norma que consagra esse pressuposto. Diz assim o legislador: Ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos. Contudo, esta formulação precisa de ser devidamente interpretada, como a grande maioria das disposições jurídicas.
Da análise literal do preceito, ou seja, aquela que resulta das regras gramaticais da língua portuguesa, retira-se, na minha perspectiva, que a eficácia externa do acto é o critério da impugnabilidade do mesmo. Assim, os actos com eficácia externa seriam imediatamente impugnáveis, enquanto os actos com eficácia interna não seriam admitidos para esse efeito. Depois de introduzir a eficácia externa como critério, introduz o legislador a ideia de acto lesivo de posições substantivas dos particulares, através do advérbio especialmente. E o que poderá resultar deste termo? Parece resultar desta estruturação que o conceito de acto lesivo é apenas uma espécie dentro do género “eficácia externa”. Concluindo, da análise literal poderíamos dizer que são impugnáveis os actos com eficácia externa, sendo que os actos com efeitos lesivos nas posições jurídicas de vantagem dos particulares ocupam uma grande parte do critério de impugnabilidade referido (eficácia externa). De qualquer modo, esta é minha interpretação literal: mais à frente apresentarei outros argumentos e retirarei a minha conclusão.
Neste sentido veja-se o Acórdão TCAS 06-03-2008: “Determinante é que se trate de um acto administrativo com eficácia externa pois a susceptibilidade de afectar direitos ou interesses legalmente protegidos (segmento final do artigo 51º/1 CPTA) constitui um mero critério da impugnabilidade do acto – definido em função da garantia constitucional estabelecida no n° 4 do art. 268.° CRP –, e não um requisito absoluto do conceito”.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, no seu manual, adopta também o critério da eficácia externa: “com efeito, este é o mínimo denominador comum: os actos que não só não afectam a esfera jurídica de ninguém, como nem sequer se destinam a produzir efeitos externos, são os únicos que não podem ser impugnados por ninguém…” Daqui parece resultar, porém, que a eficácia externa a que o Autor se refere não é sinónimo de acto externo, mas significa antes que os seus efeitos sejam susceptíveis de se projectar na esfera jurídica de qualquer entidade, em condições de fazer com que para elas possa resultar um efeito útil da remoção do acto da ordem jurídica. O Autor defende que, não há que distinguir, para efeitos de impugnabilidade, os actos internos dos externos (1). Refira-se, a este propósito, o Acórdão TCAN 20-09-2007, sustentando que, por via de regra, apenas os actos externos, por serem os únicos capazes de se projectarem na esfera jurídica de terceiros, e, consequentemente, de afectarem os seus direitos ou interesses legítimos, são susceptíveis de impugnação contenciosa; porém, a complexa realidade jurídica não se compadece frequentemente com a pureza teórica da dicotomia actos internos/actos externos, adulterando-a com figuras híbridas de actos que, embora de matriz interna, acabam também por afectar terceiros, causando-lhes danos judicialmente atendíveis; o artigo 51º/1 CPTA, quando considera impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, deve ser interpretado de forma a incluir os actos em que alguns dos seus efeitos afectem imediatamente direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, apesar da maioria deles se projectarem apenas no interior da administração. De facto, retira-se do acórdão que o que é relevante é a existência de alterações/afectações na esfera jurídica.
Contudo, num artigo que escreveu especificamente sobre a questão, o Autor desenvolve, dizendo que a impugnabilidade do acto está intrinsecamente ligada à legitimidade processual. Ou seja, parece decorrer da sua exposição que a impugnabilidade dos actos, sejam internos ou externos, é apreciada no caso concreto, em função do concreto autor da acção jurisdicional – “um determinado interessado pode não estar legitimado ou não ter interesse em impugnar um acto administrativo e esse acto nem por isso deixar de ser impugnável…”. Neste âmbito o autor apresenta o exemplo dos pareceres vinculativos, considerando que, apesar de serem puros actos administrativos (nos termos do 120º CPA), devido ao seu carácter não externo e imediatamente lesivo no que toca aos particulares, não podem ser por estes impugnados (introdução do critério da legitimidade do 55º CPA).

Seguidamente refira-se a posição do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA. Sustenta o Autor que a eficácia externa e o efeito lesivo do acto são ambos critérios de impugnabilidade, salientando que cada um deles está pensado para um tipo específico de posições, isto é, a introdução destes critérios surge na sequência da atribuição de legitimidade quer a titulares de direitos subjectivos (entendidos naquela perspectiva ampla do Professor) quer a entidades em posições meramente objectivas. O acto lesivo estaria pensado para os titulares desses mesmos direitos subjectivos lesados pelo acto administrativo; a expressão “eficácia externa” estaria destinada aos actos que, por não se coadunarem com o conceito de lesão na esfera subjectiva, violariam um interesse meramente objectivo de tutela da legalidade e do interesse público.
Na verdade, esta conclusão (e apenas esta, pois em relação à mesma disposição os autores têm, no que concerne a um tema mais á frente abordado, uma posição oposta), embora formulada em termos diferentes da posição anterior, em termos substanciais é significativamente idêntica. Enquanto MÁRIO AROSO DE ALMEIDA opta por introduzir um critério de eficácia externa determinado pela legitimidade, VASCO PEREIRA DA SILVA divide o normativo em dois segmentos e considera cada um deles como atributivo da impugnabilidade em função do autor.

O que há a dizer deste entendimento? Em primeiro lugar, julgo que se confunde justamente o pressuposto específico da acção de impugnação de actos com o pressuposto geral de legitimidade, embora, há que admitir, estejam bastante ligados. Julgo que o critério autónomo de impugnabilidade assenta antes na lesão, entendida num determinado sentido. Em relação aos titulares de direitos subjectivos, o critério tem que ser efectivamente o da lesão em sentido estrito; já no que concerne àqueles que não estão num grau suficientemente próximo dos efeitos lesivos stricto sensu do acto (Ministério Público ou aqueles que apenas se podem valer da garantia da acção popular), não penso que o critério seja rigorosamente o da eficácia externa, mas o da lesão da própria legalidade, se me permitem a expressão, independentemente de ser acto interno ou externo. Embora esta “teoria” não implique resultados práticos consideravelmente divergentes das anteriores (a não ser a possibilidade da acção objectiva ter como objecto mediato um acto interno), a verdade é que institui um critério formalmente autónomo do da legitimidade e também tem a vantagem de não jogar com a expressão de eficácia externa, que não apresenta uma delimitação bem precisa. O critério da lesão é uma decorrência natural do texto constitucional (268º/4 e 219/1º). Aliás, é a lesividade do acto que atribui relevo no domínio da impugna¬ção de actos praticados no decurso de um procedimento, na medida em que, embora não sejam imediatamente lesivos no seu grau máximo (aquele que resulta do carácter externo do acto), por estarmos ainda numa fase do processo, é a eventual produção de efeitos externos lesivos da esfera jurídica de particula¬res que tendencialmente determinará o carácter impugnável do acto.

Passarei agora à aplicação do critério à resolução de algumas questões que têm sido amplamente discutidas pela doutrina e alvo de confronto jurisprudencial.

Salvo o devido respeito pela posição de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, não me parece de recusar, em termos genéricos, aos particulares directamente lesados, a possibilidade de impugnarem um parecer administrativo vinculativo (ver 98º/1 CPA). Em relação à sua qualificação como acto administrativo parece-me ter razão o Autor: “no que se refere aos pareceres vinculativos, não temos dúvidas em assumir que tais actos que, prejudicando o exercício dos poderes decisórios dos órgãos a que se destinam, tem a natureza de actos administrativos, de conteúdo decisório”. Contudo, na minha opinião, o particular pode intentar uma acção de impugnação desse parecer, pois, substancialmente, ele é lesivo da sua posição. O acórdão anteriormente citado defende que o acto administrativo impugnável é o acto dotado de eficácia externa, actual ou potencial, neste último caso, desde que seja seguro ou muito provável que o acto irá produzir efeitos, o que, em certa medida, orienta a solução nesse sentido. É que, de facto, sendo vinculativo o parecer emitido por um determinado órgão, configura-se como um verdadeiro acto administrativo que define a posição jurídica dos interessados, sendo imediatamente impugnável na via contenciosa. Repare-se: se o parecer é vinculativo, então o órgão a quem se destina, sob pena de cometer uma nulidade, vai adoptá-lo com um elevado nível de certeza, sendo, por isso, atenta a sua lesividade (autónoma e imediata) de o considerar destacável para efeitos de recurso contencioso (contudo, o recurso contencioso interposto, não trava o prosseguimento do procedimento e, portanto, não impede a prática do acto final).

Existe uma outra questão que se prende, na minha perspectiva, com o critério da impugnabilidade proposto. Trata-se da regra contida no 53º CPTA: o CPTA vem recusar a impugnabilidade dos actos meramente confirmativos, como regra, porque considera que o acto verdadeiramente lesivo é o acto principal ou primário, e não aquele que, na verdade, não acrescenta nenhum elemento novo, a não ser uma diferente autoria. Do dispositivo normativo pode-se retirar, como afirma MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, a admissibilidade da impugnação precisamente quando não tenha havido: a) impugnação, b) notificação ou c) publicação. Na verdade, quando o recurso ou a reclamação confirmarem o acto anterior, expressa ou tacitamente, eles não estão por si a voltar a exercer o poder de decisão, não sendo eles os actos lesivos. É por isso que, pessoalmente, defendo que, por exemplo, quando um recurso hierárquico confirme o acto do subalterno, o titular do direito pode, não impugnar o acto secundário mas o primeiro acto.

Finalmente, parece também decorrer do critério da lesão a solução que o CPTA veio adoptar, a qual decorria já do 268º/4 da CRP: não é admissível que a lei infraconstitucional imponha restrições no direito de recorrer ao tribunal para a defesa de um direito, introduzindo como pressuposto de impugnabilidade a utilização de meios de impugnação graciosa. Ou seja, esclarece-se que não são de admitir os recursos hierárquicos necessários na vigente ordem constitucional. Em relação a esta problemática, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA defende que, se é verdade que a regra é verdadeiramente o recurso hierárquico facultativo, isso não impede que subsistam casos pontuais (quer anteriores quer posteriores à entrada em vigor do CPTA) de recurso hierárquico necessário, desde que esse requisito seja expresso – ou comummente aceite, desde que anterior ao código. Embora seguida constantemente pela jurisprudência administrativa, não creio que esta tese possa proceder. Se existe uma norma que expressamente abdica de qualquer conceito de definitividade como pressuposto processual, não se pode dizer que o preceito correspondente do CPA não tenha caducado, por falta de objecto (VASCO PEREIRA DA SILVA e JOSÉ MANUEL CORREIA). É esta a interpretação mais conforme com a constituição. Quanto muito poderia colocar-se a questão da conformidade das leis posteriores ao CPTA que expressamente referissem essa necessidade de recurso hierárquico. É que, no seio de um diploma legislativo substantivo também podem existir normas processuais. Porém, embora me pareça discutível, julgo que seria muito provavelmente uma situação de inconstitucionalidade material, à semelhança do que já defendia VASCO PEREIRA DA SILVA antes do CPTA em relação à norma do CPA.

1. “ (…) parece, com efeito, de entender que se encontram reunidos na mesma categoria do acto administrativo, tanto os actos que se projectem no âmbito da relação administrativa geral ou comum, como aqueles cujos efeitos se esgotam no âmbito das chamadas relações intra administrativas e inter orgânicas, que se desenvolvem dentro da esfera interna às entidades publicas, entre os seus órgãos ou entre órgãos e funcionários ou agentes. Na ordem jurídica portuguesa, o conceito de acto administrativo não se esgota nesse segmento regulador mas antes cobre todos os actos jurídicos concretos com conteúdo decisório, mediante os quais a administração, no exercício da função administrativa, exprima a sua vontade de determinar o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adoptar, incluindo aqueles que sejam produzidos no âmbito de relações intra administrativas.” – MÁRIO AROSO DE ALMEIDA; Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável; in Homenagem ao Prof. Marcello Caetano, volume II.

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