sábado, 17 de abril de 2010

A (des)necessidade dos meios de impugnação administrativa

Foi sobretudo em função das revisões constitucionais de 1989 e 1997, que vieram alterar as normas relativas às garantias dos cidadãos perante a Administração - desde logo consagrando expressamente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 268º, nº4 da CRP) -, que a Lei nº15/2002, de 22 de Fevereiro, veio aprovar o Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Era necessário compatibilizar a legislação processual administrativa com a Constituição, da qual havia desaparecido a definitividade dos actos enquanto pressuposto da sua recorribilidade, passando a ser susceptíveis de impugnação contenciosa os actos lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Por este motivo, o art. 51º, nº1 do CPTA veio concretizar o direito fundamental de acesso à justiça administrativa, afirmando a impugnabilidade dos actos administrativos em razão da eficácia externa e da susceptibilidade de lesar direitos ou interesses dos administrados, afastando, por conseguinte, a exigência de impugnação administrativa (reclamações ou recursos) como meio de acesso à impugnação contenciosa.

A entrada em vigor do CPTA levou a que se questionasse se todo o acto administrativo com eficácia externa e de conteúdo lesivo podia ser logo judicialmente impugnado, sendo desnecessário o prévio esgotamento da via administrativa, ou se, pelo contrário, não havia um afastamento definitivo da necessidade de impugnação graciosa como pressuposto de abertura dos meios contenciosos.

Esta posição é sufragada, nomeadamente, pelos Professores Mário Aroso de Almeida e Freitas do Amaral, cujo entendimento se traduz na ideia de que, embora a regra geral do recurso hierárquico necessário tenha sido revogada pelo CPTA, não houve revogação das normas especiais e a elas é preciso atender, sejam anteriores ou posteriores à lei processual administrativa.

Semelhante orientação tem o Professor Vieira de Andrade, considerando que em face da eliminação da regra geral da necessidade de impugnação administrativa prévia e do direito a uma tutela judicial efectiva, “tal impugnação só pode ser entendida como necessária nos casos em que uma lei o determine expressa ou inequivocamente”.

A mesma linha segue a jurisprudência, designadamente o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão 0701/09 de 11/03/2010, que se tem vindo a pronunciar pela admissibilidade do recurso hierárquico necessário, considerando “inaplicável” a regra geral contida no art. 51º, nº1 do CPTA “sempre que houvesse determinação legal expressa, anterior ou posterior à sua entrada em vigor, que previsse a necessidade de impugnação administrativa como pressuposto da impugnação contenciosa”.

No sentido do fim inequívoco da necessidade de recurso hierárquico e na defesa da imediata impugnação judicial dos actos administrativos pronunciou-se o Professor Vasco Pereira da Silva. O Professor considera que a argumentação que atende às normas especiais relativas a impugnações administrativas necessárias só poderia fazer sentido quanto àquelas que fossem posteriores à entrada em vigor do CPTA, uma vez que as anteriores não eram especiais, mas antes confirmações da regra geral precedente. (E mesmo em relação a normas especiais aprovadas após a reforma, a verdade é que, de facto, poucas existiram até hoje.)

De qualquer forma, no entender do Professor não houve revogação do recurso hierárquico necessário – ocorreu, sim, a sua caducidade. A consagração constitucional do acto lesivo (art. 268º, nº4 da CRP) fez caducar por inconstitucionalidade superveniente o pressuposto da definitividade e, consequentemente, a necessidade de recurso hierárquico. Deste modo, para ter acesso à via judicial, basta que um acto administrativo lese os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Além disso, a regra do recurso hierárquico necessário configurava uma violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, também em razão do efeito preclusivo da impugnabilidade do acto, no caso de não haver prévia impugnação administrativa no prazo de trinta dias (art. 168º, nº 1 do CPA). Se o recurso interposto pelo lesado fosse extemporâneo (e, por isso, rejeitado – art. 173º, “d” do CPA), não haveria acto passível de impugnação contenciosa, o que equivaleria à inutilização da possibilidade de exercício do direito. Só este argumento parece já suficiente para determinar a inconstitucionalidade da necessidade de recurso hierárquico.

O recurso hierárquico tornou-se, portanto, desnecessário, deixando de ser exigível como meio de abertura da via contenciosa. O que não significa, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, que tenha deixado de ser “útil”. Os meios de impugnação administrativa são úteis caso os particulares entendam, por diferentes razões (nomeadamente a demora dos tribunais), que será melhor a opção de accionar a via do recurso hierárquico – não obstante o superior hierárquico ter, quase sempre, a tendência de confirmar as decisões dos seus subalternos.

A utilidade do recurso hierárquico foi reforçada pelo art. 59º, nºs 4 e 5 do CPTA. O nº4 vem declarar a suspensão do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo através da utilização de meios de impugnação administrativa, só voltando o prazo a correr com a notificação da decisão proferida sobre esta ou com o decurso do respectivo prazo legal. Isto confere maior vantagem à utilização dos meios graciosos, já que o particular sabe que não está a perder tempo – o prazo em que pode lançar mão da via judicial deixa de correr. Outro benefício proporciona o nº5, ao facultar ao particular a possibilidade de proceder à impugnação contenciosa do acto na pendência da impugnação administrativa – é, pois, possível a impugnação simultânea dos actos por via administrativa e por via judicial.

Estas disposições confirmam o afastamento definitivo do recurso hierárquico necessário, não só por reforçarem expressamente a ideia de que é possível impugnar contenciosamente um acto administrativo sem o prévio esgotamento da via graciosa, como pelo facto de pressuporem que o recurso hierárquico é facultativo, já que, a haver um recurso hierárquico necessário, este suspende a própria eficácia do acto (art. 170º, nº1 do CPA), de modo que não se põe sequer o problema da suspensão do prazo de impugnação judicial.

Em conclusão, perante o acto do subalterno, o particular pode: i) optar pela impugnação contenciosa; ii) optar pela impugnação administrativa, podendo esperar ou não pela resposta da Administração para recorrer à via judicial.

Assim, permito-me discordar da solução alcançada pelo STA no Acórdão 0701/09 de 11/03/2010, que aceita a existência de impugnações administrativas necessárias. Embora a jurisprudência se tenha vindo a pronunciar pela admissibilidade do recurso hierárquico necessário, deixo uma breve passagem constante da decisão elaborada pelo Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão 05104/09 de 19/05/2009, que dá algum ânimo aos defensores da desnecessidade dos meios de impugnação administrativa:

“…o princípio pro actione, bem como o princípio da prevalência da substância sobre a forma, nortearam, sem dúvida, a elaboração do CPTA, o qual, neste aspecto, parece ter derrogado muitas das normas do CPA sobre o recurso hierárquico necessário, passando este, assim, em todos os casos, a ser facultativo.”

Alexandra Valpaços (subturma 10)


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