sábado, 17 de abril de 2010

Recurso Hierárquico "Necessário"


O direito de acesso à Justiça Administrativa foi sendo conquistado paulatinamente. A garantia da via judiciária consiste no direito de recurso a um tribunal e de obter uma decisão jurídica sobre qualquer questão juridicamente relevante em tempo útil, ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira.


A Constituição de 1976 dizia no seu artigo 269.º/2: "É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos de executórios." Aqui nasce a dicotomia entre recursos hierárquicos necessários e facultativos. Com a revisão constitucional de 1982, o legislador constituinte deixou a porta aberta para que o legislador ordinário aprovasse o ETAF e o CPTA. Em 1989, as noções de definitividade e executoriedade são abandonadas em sede de revisão constitucional, passando a ser recorríveis "quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares." Deixa de existir a designada definitividade vertical, segundo a qual, para aceder à via contenciosa seria necessário o prévio esgotamento das garantias administrativas. Contraposta a esta existe (ou existia) a definitividade horizontal que ditava que o acto a impugnar tinha de ser praticado no termo de uma sequência procedimental. Hoje, qualquer acto inserido num procedimento pode ser impugnado.


Há um sector da doutrina que defende a inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário. O Professor Vasco Pereira da Silva mesmo antes da reforma já o fazia baseado nos seguintes argumentos: violação do princípio constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (268.º/4 CRP) pois o facto de ter de haver um recurso hierárquico necessário é uma negação do recurso contencioso; violação do princípio constitucional da separação entre a Administração e Justiça visto que faz precludir o direito à via contenciosa devido à não utilização de uma garantia administrativa; violação do princípio constitucional da desconcentrarão administrativa que prevê a imediata impugnabilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, independentemente da organização e hierarquia administrativas; violação do princípio da efectividade da tutela uma vez que passados 30 dias que é o prazo do recurso hierárquico, há efeito preclusivo de acesso ao contencioso administrativo. A doutrina maioritária e jurisprudência não acompanhavam esta posição.


Com um entendimento contrário surgem Mário Aroso de Almeida, Vieira de Andrade e Freitas do Amaral. Estes autores sustentam que não cabe à Constituição estabelecer os pressupostos de que depende a impugnação contenciosa de actos administrativos. Esta competência caberia sim ao legislador ordinário pois é uma função puramente ordenadora do processo. Todavia, quando estejam comprometidas as exigências de proporcionalidade e adequação, o juiz pode dispensar a impugnação administrativa necessária, diz Vieira de Andrade. Freitas do Amaral afirma que a solução da desnecessidade de recurso hierárquico pode acarretar uma avalanche de processos nos tribunais administrativos, paralisando a Administração Pública.


Após a reforma de 2002 do CPTA, o Professor Vasco Pereira da Silva entende que o recurso hierárquico deixou de ser claramente necessário. Em primeiro lugar, o artigo 51.º/1 CPTA veio prever a impugnabilidade de um acto administrativo se este lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares ou se for dotado de eficácia externa. Não é necessário ser um superior hierárquico para preencher esta previsão. Em segundo lugar, o artigo 59.º/4 CPTA atribui efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa quando as garantias administrativas forem utilizadas. Deste modo, estas garantias ganham maior eficácia pois o particular pode recorrer à via graciosa sem que veja precludido o seu acesso à via contenciosa. As garantias administrativas passam de desnecessárias a úteis e recomendáveis (nas palavras de Paulo Otero) dado que a Administração tem uma segunda hipótese de satisfazer a pretensão do particular, para além de ser uma via mais rápida e informal e menos dispendiosa. Contudo, esta suspensão não é vinculativa para o particular. O Professor entende ainda que o próximo passo a dar é o efeito suspensivo da própria execução da decisão administrativa para que a eficácia da via graciosa seja total. Em terceiro lugar, o artigo 59.º/5 CPTA prevê a possibilidade de aceder simultaneamente às garantias administrativas e contenciosas. Isto é, mesmo quando o particular utilizou previamente uma garantia administrativa, pode impugnar contenciosamente do acto administrativo antes da decisão administrativa. Esta faculdade demonstra inequivocamente a desnecessidade do recurso hierárquico, bem como de todas as garantias administrativas.


Por outro lado, surge uma interpretação restritiva deste regime jurídico, noutro sector da doutrina. Segundo Mário Aroso de Almeida, este novo regime revoga apenas a regra geral de exigência de recurso hierárquico necessário, o que não implica a revogação de leis especiais que prevejam tal exigência, quer anteriores, quer posteriores à sua entrada em vigor. Assim, estas disposições só poderiam considerar-se revogadas mediante disposição expressa. Para este autor, portanto, continua em vigor o recurso hierárquico necessário quando em lei especial esteja previsto. Como resposta a esta ideia o Professor Vasco Pereira da Silva diz que esta regra especial não se coaduna com o regime geral visto que é exigir em certos casos o que já não é condição de impugnação nem pressuposto processual. Para além disso, entende que as ditas regras especiais não eram especiais, eram apenas a reiteração da regra geral de impugnação hierárquica necessária. Ora, a revogação da lei geral revoga todas as outras regras que se limitavam a confirmar a regra geral. O Professor alega ainda que o novo regime não vem revogar tais leis especiais. Diz haver sim uma situação de caducidade por falta de objecto nestes casos pois que a exigência de recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, caducando, pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que as justificavam. Perante esta reforma, o Professor Vasco Pereira da Silva crê ser impossível a entrada em vigor de excepções a este novo regime o que seria totalmente incompatível agora já não só com a Constituição mas também com o CPTA. Deste modo, considera afastadas todas as disposições normativas anteriores à reforma do contencioso e eventuais derrogações posteriores por manifesta inconstitucionalidade. Um último argumento sistemático é que o CPTA faz prevalecer o mérito sobre a forma, o que significa o afastamento de diligências inúteis.


Cabe tomar posição. Creio que após a reforma do contenciosa é inegável que o recurso hierárquico é desnecessário. Deste o artigo 51.º/1 ao 59.º/4 e 5, o espírito desta reforma foi claramente por lado a lado a impugnação graciosa e a contenciosa, pois que não faz sentido continuar a afirmar a necessidade do recurso hierárquico. No que concerne às leis avulsas que ainda prevêem o recurso hierárquico necessário, pergunto: se, no âmbito de uma dessas normas, alguém ultrapassar o prazo de 30 dias para impugnar graciosamente, como é tutelado o seu direito se a necessidade de recurso hierárquico faz precludir o acesso à via contenciosa? Não é tutelado o que corresponde a uma violação clara do direito de acesso à Justiça Administrativa.


É agora necessária uma operação de harmonização por parte do legislador entre o CPA e demais legislação avulsa que continuam a prever o recurso hierárquico necessário. Para tal, o Professor Vasco Pereira da Silva propõe uma revogação expressa de tais disposições, acompanhada da generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas e da fixação de um prazo de 30 dias para os particulares impugnarem administrativamente. Esta solução permitiria um incentivo ao particular para utilizar a via graciosa, uma segunda oportunidade para a Administração e o bom funcionamento do sistema de justiça administrativa porque o bom funcionamento das garantias administrativas resolveriam preventivamente certos litígios. Até à intervenção do legislador de procedimento, devem considerar-se caducadas todas as disposições que prevejam a necessidade do recurso hierárquico. Contrariamente, Mário Aroso de Almeida alega que o CPTA não teve o alcance de revogar as disposições do CPA.


Aguardamos intervenções legislativas.



Maria Teresa Ferreira, Subturma 3


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