domingo, 23 de maio de 2010

Ainda haverá recursos hierárquicos necessários?

Num país onde proliferam as burocracias e as formalidades desnecessárias e injustificadas, eis aqui mais um bom exemplo do desperdício de recursos e tarefas indesejadas pela simplificação administrativa de procedimentos e processos complexos a que sujeitavam os particulares para verem os seus direitos apreciados contenciosamente. Eram criados obstáculos intransponíveis e injustificados no acesso à justiça. O recurso hierárquico necessário previsto nos arts 167º. e ss. do CPA. consiste numa desmultiplicação de esforços por parte do particular e até mesmo da própria administração no sentido de reapreciar a sua própria decisão para que só posteriormente se possa sujeita-la a uma efectiva tutela jurisdicional feita pelos tribunais administrativos e não pelos órgãos da administração.
Em traços muito gerais, antes da reforma o recurso hierárquico era a condição de acesso à justiça administrativa, o que poderia em alguns casos dificultar e até mm precludir a tutela jurisdicional visto que os prazos eram demasiado curtos para a interposição do recurso hierárquico (30 dias segundo o art. 168º. CPA), este prazo constituía uma redução significativa dos prazos gerais para a impugnação dos actos administrativos (3 meses no caso de actos anuláveis – art.58º. nº2 b)CPTA). Esta exigência justificada apenas por razões de uma psicanálise incompleta em que persistiam resquícios dos “traumas da infância difícil” do contencioso autoritário e dos “privilégios de foro da administração” por incrível que pareça era defendida pela jurisprudência e pelo prof. Vieira de Andrade!
Actualmente após a reforma de 2004, o cenário mudou e não existem razões de todo para defender um recurso hierárquico necessário pois o CPTA no seu art. 51º. nº1 veio tornar caduco e desnecessário o recurso hierárquico necessário ao prever um conceito amplo de acto administrativo impugnável, nada restando para o recurso hierárquico necessário pois todos os actos passaram a ter ao seu dispor uma efectiva tutela jurisdicional directa sem necessidade de recurso ao meio gracioso anteriormente imposto.
Esta mudança de paradigma faz-nos questionar se ainda haverá recursos hierárquicos necessários visto que este princípio geral veio esvaziar de conteúdo útil o recurso a este meio administrativo! O prof. Vasco Pereira da Silva vinha desde há muito tempo a defender a desnecessidade do recurso hierárquico necessário contra boa parte da doutrina e até da jurisprudência no entanto os ventos de mudança da reforma do contencioso de 2004 parecem ter vindo reconhecer lhe razão ao contemplarem no art. 51º. nº1 do CPTA uma clausula irrestrita de acesso à justiça administrativa de TODOS os actos da administração lesivos dos interesses dos particulares a par da consagração no art 59º. nº4 do efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa quando o particular faça uso primeiro das garantias administrativas, ou seja pretende-se com isto dar alguma utilidade ao recurso hierárquico uma vez que quem o utilizar não fica prejudicado quanto a utilização dos meios contenciosos porque enquanto não obtiver resposta da administração o prazo suspende-se a seu favor. Pretende-se com isto favorecer a utilização pelos particulares das vias administrativas afim de resolver a partida situações que por via contenciosa trariam sempre mais incómodos e morosidades, daí o prof. Vasco Pereira da Silva dizer que o recurso hierárquico passa a ser sempre desnecessário mas torna-se agora também sempre útil! Outro dos argumentos legais que acompanham a posição do prof. é a solução apresentada pelo art. 59º. nº5 CPTA que afasta por completo a necessidade do recurso hierárquico já que prevê a possibilidade do particular aceder de imediato à via contenciosa, independentemente de ter ou não feito uso da via graciosa passando a não ser necessário esperar pela resposta da administração para impugnar contenciosamente o acto administrativo, ou seja permite-se a pendência paralela da mesma acção por via graciosa e contenciosa.
Exposto isto, e como tudo na vida não é tão claro quanto possa parecer há certa doutrina que persiste em ressuscitar este recurso hierárquico necessário do reino dos mortos e para tal usa argumentos facilmente desmontados pelo Prof. Vasco Pereira da Silva. O Prof. Mário Aroso de Almeida defende uma interpretação restritiva do regime jurídico acima enunciado, afirmando que apenas a regra geral do CPA foi revogada pelo novo regime de impugnação de actos do CPTA mas propõe a tese de que todos os recursos hierárquicos necessários contemplados em legislação avulsa com regras especiais e até futuros diplomas impondo tal permaneçam em vigor, tentando dar assim uma ultima esperança de aplicabilidade dum instituto já caduco. Para o prof. Mário Aroso de Almeida as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei e não tenha sido revogado por expressa disposição. O prof. Vasco Pereira da Silva apesar do respeito e atenção que dispensa no seu livro a esta posição considera-a absurda uma vez que não é possível ao legislador exigir o que a lei não exige. Alem disso o argumento da especialidade das normas avulsas face a regra geral do CPA também parece ser falaciosa uma vez que essas regras especiais avulsas não faziam mais do que reiterar o que até antes da reforma era a regra geral, assim sendo uma vez revogada a norma que lhes servia de inspiração todas as outras deixam de fazer sentido até porque para efeitos contenciosos já nada valem, o que suscita até o problema já não da sua revogação mas sim da sua caducidade intrínseca por falta de objecto jurídico. Quanto a possibilidade de existência de futuras normas a preverem esta exigência torna-se um mero exercício académico pensar em tal visto que o legislador ordinário não consagrará certamente soluções inconstitucionais (violação do conteúdo essencial do direito à tutela plena e efectiva de direitos, assim como dos princípios da divisão de poderes e da descentralização) alem disso caso se admitisse certos regimes derrogatórios estaria-se a criar “privilégios de foro” para certas categorias de actos administrativos o que violaria claramente o princípio da igualdade de tratamento entre os particulares e a administração. Por ultimo o prof. enuncia o principio de acesso ao contencioso administrativo previsto no art. 268º. nº4 CRP complementado pela promoção do acesso a justiça do art.7º CPTA segundo o qual as decisões de mérito devem prevalecer sobre quaisquer outras formalidades que não incidam sobre a resolução do litigio em causa e por isso as partes devem abster-se de requerer a realização de diligencias inúteis (art.8º. nº2 CPTA).
De modo a evitar toda esta confusão interpretativa o prof. Vasco Pereira da Silva propõe que a solução que teria sido mais adequada seria a revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário a par duma suspensão automática de eficácia dos actos ate à decisão da garantia administrativa afim de proteger o particular de eventuais lesões que possam ocorrer na pendência do recurso (o art. 170º. nº1 CPA previa este efeito para o recurso necessário mas não para o facultativo nº3, o que suscita a duvida de como compatibilizar isto com este novo regime em que todos os actos se tornam facultativos). Todas estas soluções de “iure condendo” deviam ser tomadas em conta em futura revisão para que particulares, administração e bom funcionamento da justiça administrativa saíssem a ganhar.
No meu entender, à luz do actual CPTA toda esta argumentação do prof. Vasco Pereira da Silva ganha um novo sentido, tendo a lei vindo de encontro ao que já era vaticinado desde há muito tempo, sendo o prof. um subjectivista condenado e cadastrado tal como se assume não me surpreendem muitas das opções aqui demonstradas as quais perfilho na sua totalidade uma vez que toda a sua argumentação é dirigida à defesa dos direitos dos particulares ao serviço dos quais a administração deve sempre estar e não o contrario!

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