sábado, 22 de maio de 2010

As providências cautelares abrem a porta ao controlo jurisdicional de mérito?

Antes da reforma do Contencioso Administrativo, a tutela cautelar centrava-se na suspensão de eficácia de actos administrativos (actualmente prevista no art.º 112.º n.º 2 alínea a) C.P.T.A.), que revelou ser um instituto insuficiente para acautelar os interesses dos particulares de forma útil. Depois, a partir de 1985, a L.P.T.A. consagrava também a intimação, mas tinha um âmbito de aplicação bastante reduzido (encontra-se agora numa parte da alínea f) do referido artigo 112.º n.º 2 C.P.T.A.).

Com a reforma, foi instituído uma tutela cautelar com providências conservatórias e antecipatórias, e o elenco do art.º 112.º n.º 2 C.P.T.A. é meramente exemplificativo, o que significa que poderão existir outros meios cautelares nas acções administrativas, além dos que aí se prevêem. O mesmo é dizer que foi introduzida uma cláusula aberta de meios cautelares.

Assim, na altura, algumas vozes na doutrina – como Adelaide Menezes Leitão – questionaram se este novo sistema não seria uma forma de permitir um controlo político da actuação governativa, camuflado por um controlo de legalidade.
Tal questão não é desprovida de sentido, especialmente tendo em conta que a suspensão de eficácia era qualificada como um processo incidental de mérito (Professor Freitas do Amaral), dentro do qual os juízes não estavam limitados a meros juízos de legalidade, por terem que fazer uma ponderação dos interesses em presença no caso concreto.

Efectivamente, um dos limites funcionais da justiça administrativa é a insindicabilidade judicial do mérito das decisões administrativas, que tem o seu fundamento no princípio da separação de poderes (art.º 3.º C.P.T.A.)
Ou seja: quando estamos no domínio da discricionariedade administrativa, em sentido próprio, o tribunal fica adstrito a um princípio de autocontenção, nas palavras do Professor David Duarte, de modo a não estarem a exercer uma função para a qual a lei não os habilita.

Uma vez que os juízes assumem a figura de guardiães da legalidade, podem apenas controlar a conformidade da actuação administrativa com as normas legais, e com os princípios de Direito Administrativo, e consequentemente explicitar quais as vinculações a respeitar (sentenças-marco) ou intimar a Administração a actuar dentro desses limites legais.

Na jurisprudência, é referido que o controlo jurisdicional não pode ir além do conhecimento da competência, finalidade, imparcialidade e proporcionalidade (acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul). Com uma terminologia menos exacta, mas no mesmo sentido, nos tribunais ingleses é usado um critério de “razoabilidade” (Wednesbury test): os órgãos jurisdicionais só podem interferir quando a Administração tenha actuado de uma forma tal, que nenhuma autoridade razoável teria procedido da mesma forma.

Ora, se isto é assim no âmbito do processo principal, o tribunal também não poderá dizer à Administração como agir em sede de um processo cautelar, que tem natureza provisória e instrumental face ao anterior. Pelo menos é assim que pensa a esmagadora maioria da doutrina.

No entanto, não é este o entendimento de Tiago Antunes, que, a propósito das providências antecipatórias, afirma terem os juízes autorização para ponderar opções de mérito. Um dos argumentos é precisamente o carácter provisório da providência cautelar, na medida em que, podendo essa decisão ser revista, a liberdade de decisão da Administração não fica inviabilizada.

Aliás, o objectivo desta interferência do tribunal será o de garantir a liberdade de decisão final, no âmbito do processo principal.
Contudo, é necessário que haja uma necessidade absolutamente imediata do exercício da competência discricionária, para que se justifique a regulação da situação pelo tribunal. O tribunal só se pode imiscuir na margem de livre apreciação da Administração para evitar danos decorrentes do periculum in mora (previsto no art.º 120.º n.º 1 alíneas b) e c) C.P.T.A.).

Tal entendimento não vai necessariamente contra o princípio da separação de poderes, uma vez que este não é visto em moldes rígidos; no nosso ordenamento vigora uma separação com interdependência de poderes.

Cabe ainda referir que o próprio artigo 120.º n.º 2 C.P.T.A. faz referência à necessidade da ponderação dos interesses públicos e privados em presença, pelo juíz, conferindo uma salvaguarda, face aos critérios do periculum in mora e do fumus boni juris (consagrado na alínea a) do art.º 120.º n.º 1 C.P.T.A.).

Já para Maria Fernanda Maçãs, os tribunais estão obrigados a fazer uma ponderação, sim, mas objectiva, dos factos e do direito que se afigurem pertinentes.

Concluindo, considera-se pertinente a argumentação do Dr. Tiago Antunes, e como tal existe, em certa medida, um controlo de mérito em sede da tutela cautelar.
Apesar disso, tal não implica que se esteja a instituir uma forma de controlo político, pelos órgãos jurisdicionais, considerando que, na acção principal, há unanimidade em afirmar que o tribunal não pode substituir-se à Administração, numa decisão discricionária.

Os juízos de conveniência e oportunidade são excepcionais, mantendo-se o estrito controlo de legalidade, nos restantes casos, nunca deixando de caber à Administração Pública a definição e a concretização do interesse público.

Importa é que a consagração da tutela cautelar tal com está consagrada no C.P.T.A. não vá redundar na sobrelotação dos tribunais, o que irá acarretar riscos de precipitação nas decisões de decretar as providências cautelares.

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