quinta-feira, 13 de maio de 2010

QUANDO É QUE A RESPONSABILIDADE VESTE PÚBLICO?

O CASO DO FUNCIONÁRIO A CAMINHO DE CASA…

Queria, desde já, deixar bem claro que não pretendo ser original, ou melhor, redijo o trabalho com a consciência plena de que é muito difícil ser-se inovador, com um tempo tão limitado e um conhecimento ainda tão diminuto. O mote desta escrita foi basicamente a intriga que o famoso condutor da administração pública (um agente administrativo) me causou, numa aula passada de contencioso… Aquilo que me proponho é, assim, partilhar as minhas incursões por um tema que me suscitou uma grande perplexidade: a responsabilidade civil extracontratual do “Estado” (entidades de direito público e sob forma privada com funções administrativas), pelo exercício da função administrativa.

Já não somos do tempo em que o Estado, em sentido lato, estava absurdamente protegido pela divindade, não sendo responsável pelos seus actos ilícitos (que, de uma certa forma, nem o seriam!). Também já evoluímos consideravelmente, deixando para trás a responsabilidade pública apenas em situações de gestão privada (embora esta já não seja, como é partilhado por muitos autores, uma realidade claramente delimitável).

Como realça o Professor Fausto Quadros, o princípio segundo o qual todo aquele que cause um dano a outrem responde por esse dano, que é um princípio geral do Direito, com origem no Direito Romano, e que está acolhido no nosso Código Civil, no art. 483º, com remissão para outros preceitos, também se aplica ao Poder (ao Legislador, à Administração, aos Tribunais, e a outros Poderes). A constituição portuguesa, em 1976, depois da LRCAP de 1967, deixou logo bem claro, no artigo 22º, que o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária, com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício.

Daqui parece resultar que, todo o exercício, quer actuação privada, quer actuação pública, fundamentam a responsabilidade do Estado. Porém, se em relação aos actos de gestão privada existia regulamentação pelo código civil, os actos de gestão pública eram, de modo deficitário, regulados pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967. Neste contexto surge a Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, que procurou dar resposta à necessidade de adaptar o respectivo regime legal às exigências ditadas pela Constituição da República, consagrando algumas soluções tomadas durante um certo período de tempo pela jurisprudência portuguesa. De entre outras coisas, é de salientar o aperfeiçoamento do regime da responsabilidade pelo exercício da função administrativa, embora não tão profundo quanto era esperado por alguma doutrina.

No âmbito do contencioso administrativo, a maioria da doutrina entende que o novo ETAF alargou a jurisdição administrativa aos actos de “gestão privada” (aqueles que respeitam a situações em que a Administração, através dos seus órgãos, funcionários ou agentes, actue em paridade com qualquer outro particular, num contexto desprovido de qualquer ligação directa ao fim de interesse público – CARLOS CADILHA), o que decorre não só do elemento histórico (baseado nos trabalhos preparatórios), como do elemento literal. É que, nos termos do 4º/1g (questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público), não distingue o legislador, o que não acontecia anteriormente. Assim, não se configura propriamente profícua, em termos processuais, a distinção, à partida, entre actos de gestão privada e actos de gestão pública. Aquilo que julgo ser importante delimitar, porém, é o que é um acto que possa ser imputado, em certa medida, à pessoa colectiva administrativa. Noutros termos, que situações devem ser entendidas como pertencentes à Administração e quais as que, por sua vez, merecem ser enquadradas como puras actuações de índole pessoal daquele sujeito (titular de órgão, agente ou funcionário administrativo). Afirma o Professor MARCELO REBELO DE SOUSA que, para que haja responsabilização administrativa, é necessário que a actuação seja imputada à pessoa colectiva pública (“o critério relevante é o da responsabilização” – actos funcionais). Com o devido respeito, isso parece-me uma petição de princípio: é que, como é evidente -ou deveria ser –, para qualquer jurista, o fundamento último da responsabilidade, seja de que índole for, é sempre a imputação da actuação lesiva ao agente, recorrendo-se aos elementos, em especial, do facto voluntário e do nexo de causalidade. Na verdade, a imputação é algo de imprescindível – não é, intrinsecamente, um critério.

Embora a Lei 67/2007 apenas discipline (tese sustentada por MARCELO REBELO DE SOUSA e DIOGO BÁRTOLO, nomeadamente, e contrariada por VASCO PEREIRA DA SILVA e ANDRÉ MOUZINHO) a responsabilidade resultante de acto de gestão pública, não a que resulte de acto de gestão privada (1º/2: para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo), parece que, e isso é também o que defende o Professor MARCELO REBELO DE SOUSA, o 7º/1 e 8º são indicadores dos requisitos dos actos que se podem considerar imputáveis à pessoa colectiva administrativa, conhecidos por actos funcionais: praticados por um titular de órgão, agente ou trabalhador (1) de uma pessoa colectiva administrativa, no exercício das suas funções, decorrentes do respectivo estatuto, e por causa dessas funções. Ora, no meu entender, o busílis da questão reside precisamente em fazer uma reflexão sobre aquilo que se deve entender efectivamente por exercício das funções e por causa desse exercício – essa é a factispécie um pouco ambígua que cabe delimitar. É que, na verdade, é necessário, antes de qualificar a actuação como gestão privada ou pública (distinção que, aliás, já se demonstrou não ser no âmbito da nossa disciplina muito importante), verificar se um acto é verdadeiramente praticado pelo sujeito administrativo actuante ou pela “pessoa física em quem ele encarna”.
O que se deve entender por exercício das funções? O Professor MARCELO REBELO DE SOUSA refere que, no 2º/1 do DL 48051 (embora já revogado) estão indicadas as condições da imputação. Eu também pergunto: onde? O artigo só nos diz que é no exercício das funções. Mas, novamente, o que corresponde a tal conceito? Como distinguir um acto pessoal do da Administração?

Penso que o critério pode ser o da finalidade do acto. O que se poderá entender por isto? Este critério consistirá no seguinte: é um acto funcional, ou seja, um acto imputado à pessoa colectiva administrativa, aquele cuja finalidade directa se prende com a gestão (lato sensu) da pessoa colectiva, no âmbito das suas atribuições.

Exemplifiquemos. Um senhor A, condutor do Ministro do Ambiente, dirige-se a casa no carro do ministério, depois de terminar o seu expediente. No trajecto, atropela um peão que se encontrava a atravessar a passadeira, porque ia distraído. Numa situação como esta, será a Administração responsável? Julgo que não poderá ser. É que, veja-se, o condutor não prossegue qualquer finalidade administrativa, não está a materializar, na sua actuação, os desígnios da pessoa colectiva. Ele apenas quer chegar a casa e descansar após um dia de trabalho. E, repare-se, aqui não releva fazer qualquer distinção entre o dolo e a negligência do condutor, enquanto funcionário da Administração. Sendo o carro pertencente à Administração, o senhor A ficará depois no dever de indemnizar a Administração pelos danos patrimoniais sofridos. Note-se que esta situação é diferente daquela em que o funcionário está a conduzir a viatura, por exemplo, da casa do Ministro até ao Palácio de São Bento, sede do Conselho de Ministros – aqui já existe substância para a imputação e, sendo assim, pode ser intentada acção administrativa comum, nos termos da alínea f) do número 2 do artigo 37º do CPTA.

Mas não penso que estas sejam as únicas actuações a considerar. Se é certo que, nos termos do artigo 8º da Lei 67/2007, existe responsabilidade solidária pública em caso de dolo ou culpa grave do sujeito administrativo, penso que esta disposição deveria ser alvo de uma interpretação restritiva. Vejamos a razão. Exemplificando, mais uma vez: um funcionário da Câmara Municipal de Almada, com funções de atendimento ao público, decide agredir um utente por estar farto das suas perguntas, numa atitude completamente violenta. Ora, nestes casos, fará sentido configurar uma operação “material” destas como imputável à pessoa colectiva? Na minha modesta opinião, pelo menos quando o dolo se insere num tipo discriminado (dolo do tipo) na lei penal e que seja fortemente censurável a nível social (como o homicídio ou as ofensas à integridade física), não se deve sustentar a responsabilidade civil, ainda que solidária, da Administração. Acrescente-se um argumento de peso neste sentido: nos termos do artigo 8º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei 58/2008 de 9 de Setembro, deve ser dada notícia ao Ministério público, para que este promova a acção penal (inquérito) e, como se sabe, os pedidos cíveis devem correr com a acção penal.
Saliento que, considerar que estas actuações exemplificativas sujeitam o Estado a uma responsabilidade é, em certa medida, um caminho para a desresponsabilização daqueles que estão investidos num qualquer estatuto jurídico do qual resulta uma sua particular ligação a uma pessoa colectiva pública. E, em acréscimo, também possa configurar uma oneração injustificada das posições patrimoniais de todos nós, contribuintes irremediavelmente.
É claro que os mais apegados à letra e aos direitos, liberdades e garantias sempre contra-argumentariam com uma interpretação “mais conforme” à Constituição, nos termos do 22º CRP, bem como com a obrigatoriedade do direito de regresso (artigo 6º Lei 67/2007). Porém, penso que, não só o texto constitucional pode ser alvo, ele próprio, de interpretação, no sentido de admitir o argumento contra-balançante da justa utilização dos dinheiros públicos (que também se pode retirar da Constituição, nomeadamente através da protecção da propriedade privada), como deve ser referido que as acções de regresso, embora pela sua natureza, não pareçam implicar um corte nas despesas, são sempre fonte de gastos.
Embora seja verdade que o regime de solidariedade consagrado na lei (para os casos em que não haja culpa leve) tenha o escopo de reforçar a garantia dos particulares perante as entidades públicas, pois que é certo que a solidariedade se traduz em mais e melhores oportunidades de ressarcimento dos danos sofridos (CABRAL DE MONCADA), parece não fazer sentido haver uma cobertura civil-patrimonial da Administração quando, efectivamente, não existe uma aparência razoável de que é responsável o ente administrativo. Este é também um argumento a considerar, já que, não importa olvidar, a própria matéria da responsabilidade administrativa deve ponderar a convicção justificada do particular de que a conduta ainda se enquadra no âmbito próprio dos serviços públicos, e que determina que o risco corra por conta do "Estado".

Afinal de contas, no Direito, o que está sempre em causa é um problema de alcance de um equilíbrio entre bens/valores diversos, ou seja, a ponderação óptima.

1. Existem três tipos de vínculo de emprego público: a nomeação, o contrato de trabalho em funções públicas (embora nos recursos humanos também se possam encontrar contratos individuais de trabalho) e a comissão de serviço. Embora tratando-se de regimes diferentes (contendo, contudo, muitas semelhanças), a responsabilidade do sujeito existe sempre, ainda que me pareça poder configurar-se uma apreciação diferente da funcionalidade do acto em função do tipo de trabalhador administrativo em causa. Por outras palavras, quando se trata de saber se o sujeito estava no exercício da função administrativa, o regime de vinculação poderá ser um critério de apuramento. Assim, o trabalhador em regime de nomeação, que reflecte, com a máxima intensidade e plenitude, o regime da função pública, enquanto regime dotado de uma especificidade institucional e funcional (CLÁUDIA VIANA) -que o distingue do regime laboral, e cujos aspectos nucleares decorrem da CRP-, talvez veja mais dificultada a sua tarefa de provar que os seus actos são meramente pessoais.

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