terça-feira, 18 de maio de 2010

Parque Mayer vs Feira Popular - duelo de titãs no contencioso administrativo

Recentemente, foi dada notícia de mais um desenvolvimento da íntima relação entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Bragaparques, que já se prolonga desde finais de 2004, relativamente à permuta do Parque Mayer pelos terrenos da antiga Feira Popular, acordada por ambas.

Desta vez, suscitou-se a possibilidade de actuação criminosa do então Presidente da CMLisboa, Carmona Rodrigues e dos vereadores Eduarda Napoleão e Fontão Carvalho, todos arguidos num processo-crime pela prática de crime de prevaricação de cargo político aquando das referidas negociações.

No entanto, no dia 4 de Maio de 2010, o juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, na primeira sessão do julgamento, afirmou que Há impossibilidade de concluir que os arguidos tenham cometido tal ilícito uma vez que seria necessário que tivessem decidido ou conduzido o processo no âmbito das suas funções, contra direito e com intenção de beneficiar terceiros (no caso a empresa Bragaparques) e lesar a autarquia. Trata-se de um normal processo negocial, nas suas palavras, remetendo o processo para o seio dos Tribunais Administrativos (http://www.tvi24.iol.pt/politica/bragaparques-ministerio-publico-recorre-decisao-tribunal-tvi24/1160129-4072.html).
Considerações de âmbito penal à parte, o que me proponho fazer neste trabalho é determinar a competência dos Tribunais Administrativos e fazer uma breve análise dos pressupostos processuais estudados por nós nas aulas, em virtude do regresso deste processo à jurisdição administrativa, ainda que haja intenções de recorrer da decisão do tribunal pelo MP.
Fazendo um breve resumo histórico, em 2005 foi celebrado entre a CMLisboa e a Bragaparques, após deliberação maioritária na Assembleia Municipal (à excepção da CDU), um contrato de permuta, cujo objecto era a troca de parte dos terrenos da antiga Feira Popular (Entrecampos) pelos do Parque Mayer, pertencentes, respectivamente, à primeira e à segunda. A restante parcela do lote de Entrecampos foi alienada, em hasta pública, à mesma empresa, tendo sido constituído um direito de preferência severamente contestado pela oposição da autarquia (in Correio da Manhã de 4 de Maio de 2010). Isto porque a Bragaparques apresentou a terceira melhor proposta (cerca de 60 milhões de euros) de aquisição destes terrenos, mas depois da desistência das duas melhores ofertas, que ascendiam a 68 milhões de euros, a CML acabou por vender os terrenos à empresa bracarense que passou a deter a totalidade do espaço onde se instalava a Feira Popular ( http://www.esquerda.net/content/view/2766/64/). Para além disso, consta de uma das condições da permuta, de acordo com uma proposta do PSD apresentada na CMLisboa a 10 de Maio de 2010 para obstar ao agravamento de responsabilidades da autarquia neste processo, que os edifícios seriam permutados livres de quaisquer ónus e encargos, constituindo responsabilidade dos proprietários a sua efetiva desocupação e eventuais. Contudo, o município de Lisboa tomou posse dos imóveis sem que os mesmos estivessem desocupados e pretende acionar o seu direito de regresso junto da P. Mayer, referia a proposta (http://www.ionline.pt/conteudo/50514-santana-lopes-anteve-expropriacoes-valores-caso-parque-mayer-volte--bragaparques). Resta acrescentar que, em Julho de 2005, o Dr. José Sá Fernandes, então vereador da CMLisboa, intentou uma acção popular contra a CMLisboa, Bragaparques e a EPUL, contestando o acordo de permuta, a hasta pública e a elaboração de projectos para o Parque Mayer e revelando ter provas de que a empresa apresentou uma avaliação dos terrenos do Parque Mayer cerca de cinco vezes acima do seu valor real. A Bragaparques garantiu que estes valiam 50 milhões de euros escamoteando uma outra avaliação que apontava para um valor bastante abaixo, de cerca de 10 milhões de euros (http://www.esquerda.net/content/view/2766/64/).

Passando à análise do caso, importa tecer uma primeira consideração quanto ao contrato celebrado pelas duas entidades em presença. O contrato de permuta, também denominado escambo ou troca, é um contrato atípico, sem regulamentação específica (pese embora haja uma alusão específica no art.480º CComercial), ao qual são aplicadas as disposições quanto ao contrato de compra e venda em virtude do art.939º CC, uma vez que se trata de um negócio oneroso, bilateral e real quoad effectum, e, portanto, semelhante ao tipo-padrão quanto à sua constituição e efeitos. (Sobre o contrato de permuta, consultar Ac. TRP Apelação nº 2813/08.6TBPRD-A.P1 - 5ª Sec. de 07/09/2009 - http://www.trp.pt/jurisprudenciacivel/civel_2813/08.6tbprd-a.p1.html). Neste caso, a CMLisboa, proprietária dos terrenos da Feira Popular, deu-nos, em troca, pelos terrenos do Parque Mayer, pertencentes à Bragaparques. Temos, então, como partes, uma entidade pública e uma empresa privada que celebram um contrato de Direito Privado.

Nos termos do nº2 do art.202º CRP, os tribunais administrativos e fiscais são competentes para o julgamento de acções nem que estejam em causa litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, competência esta que é confirmada pelo art.1º ETAF e concretizada no art.4º do mesmo diploma. Tratando-se de um contrato, poder-se-á questionar a aplicação das alíneas b), parte final, e) ou f) do nº1 do art.4º, não se verificando nenhuma das excepções dos números seguintes. Para determinar se alguma das alíneas é aplicável, é importante definir o que está subjacente à invocação da nulidade do contrato, proposta pelo actual Presidente António Costa à CMLisboa. Tem, então, por base, o argumento de que a operação de loteamento que antecedeu a permuta violava o PDM e, portanto, o Presidente defende que a deliberação da Assembleia Municipal de Junho de 2005 é, por conseguinte, nula, uma vez que aprovou a referida operação de loteamento e o alvará de loteamento nos terrenos de Entrecampos em violação do PDM. Nesta medida, parece que estamos no âmbito da parte final da al.b) uma vez que se trata de um caso de invalidade consequente do contrato, em virtude da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração. Quanto à alienação em hasta pública, teria aplicação a al.e) uma vez que teve por base um direito de preferência que não existia. Portanto, e no que toca ao contrato de permuta, estamos perante uma relação jurídico-administrativa, nos termos do nº3 do art.212º CPR e da al.b) do nº1 do art.4º ETAF.

A questão que se colocou relativamente à possibilidade de se seguir a via criminal foi o facto de se considerar a actuação individual do então presidente e dos vereadores, que poderia consubstanciar um crime de prevaricação de cargo político, na sequência da avaliação desproporcionada do valor dos terrenos do Parque Mayer, apresentada pela Bragaparques, e que fora aceite pela CMLisboa. No entanto, pesou na decisão do juiz do TIC de Lisboa a circunstância de a celebração do contrato ter, subjacente, uma deliberação maioritária da Assembleia Municipal e não uma decisão de parte dos elementos do executivo camarário.

Havendo, então, concluído pela pertença da questão ao âmbito da jurisdição administrativa, e tratando-se de uma questão da validade do contrato, tem aplicação a al.g) do nº2 do art.2º CPTA. Estamos, então, perante uma questão que cai no âmbito da acção administrativa comum, prevista nos arts. 37º e ss. Neste caso, é relevante a al.h) do nº2 do art.37º.

No que diz respeito à legitimidade activa, a CMLisboa poderá efectivamente interpor uma acção administrativa comum, nos termos da al.g) do nº1 do art.40º, a todo o tempo (art.41º,nº1). No entanto, afigura-se fazer uma consideração relativamente à actuação da Câmara. Como referido anteriormente, fora aprovado pela CMLisboa um plano pormenor para o espaço e já fora lançada uma empreitada de obras públicas para a reabilitação do Teatro Capitólio, já durante o mandato do actual executivo camarário. Ora, na verdade, parece que estamos perante duas manifestações de vontade antagónicas uma vez que, para realizar as actividades previstas para o local, é necessário que os terrenos sejam propriedade da Autarquia. Este foi um dos obstáculos apresentados pelo PSD, na proposta apresentada à Câmara. Efectivamente, poderíamos questionar se não estaríamos aqui perante uma figura semelhante à aceitação do acto, consagrada no art.56º, no âmbito da impugnação dos actos administrativos. A actuação da Câmara consubstanciaria uma aceitação tácita da validade da deliberação. No entanto, suscitam-se bastantes dúvidas, já que estamos a falar da nulidade do próprio acto administrativo que precedeu o contrato, arguível a todo o tempo! Não há uma mera anulação do negócio que permite a consolidação dos efeitos. Há até motivações de ordem política, administrativa e, também, cultural que subjazem a esta proposta, nomeadamente o facto de se pretender adquirir por acordo ou recorrendo, se necessário, à expropriação por utilidade pública do Parque Mayer e de dinamizar a cultura artística portuguesa.

Ainda no âmbito desta legitimidade, há, apenas, que salientar o facto de José Sá Fernandes ser também legítimo autor, desta vez pela via da segunda parte da al.a) do nº1 do art.40º.

Relativamente à legitimidade passiva, nos termos do nº1 do art.10º, será demanda a Bragaparques (outra parte na relação material controvertida) e os contra-interessados, neste caso os proprietários dos restaurantes sitos no Parque Mayer e a única residente no espaço. Em declarações à LUSA/SOL, manifestam a sua oposição à proposta apresentada por António Costa. Os comerciantes e a única moradora no recinto «não aceitam a anulação da permuta dos terrenos para a Bragaparques» e querem que a situação seja resolvida pela Câmara Municipal de Lisboa. «Não podemos reparar, melhorar ou arranjar, mesmo que queiramos, as instalações dos nossos negócios», em virtude dos imóveis não lhes pertencerem e «existe um total alheamento das autoridades responsáveis», explica Júlio Calçada, o representante das entidades ainda de portas abertas naquele espaço. A ideia do possível regresso da titularidade do espaço à Bragaparques «é mais um sofrimento para nós», bastando «ver à sua volta, o estado a que isto tudo chegou», desabafa o cenógrafo Zé Manel, que trabalhou toda a sua vida nos cenários dos teatros daquele espaço. Podemos, então, identificar interesses contrapostos aos do autor.

Quanto à competência territorial, poderia ter aplicação o art.19º, relativo a contratos. Assim sendo, seria competente o tribunal convencionado ou, na sua falta, o tribunal do lugar do cumprimento do contrato. No entanto, como estão em causa bens imóveis, teríamos um concurso de normas especiais (art.17º vs 19º). Uma vez que podemos considerar o art.17º dotado de maior especialidade, até em virtude da sistematização dos artigos, o tribunal competente seria o da situação dos bens. Neste caso em particular, não haveria diferença porque, pelos dois artigos, seria competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Resta agora esperar atentamente pelos desenvolvimentos do caso.

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