terça-feira, 18 de maio de 2010

COMO IMPEDIR A ADMINISTRAÇÃO DE ACTUAR?

Em especial, a condenação à abstenção do acto administrativo

Este título pode parecer, à partida, algo estranho. Porém, creio que qualquer mente se sentirá elucidada no final do comentário. Sendo assim, parto para a apresentação do tema.

Como já foi bem salientado pelo professor VASCO PEREIRA DA SILVA, a actuação administrativa nos dias de hoje já não se pauta maioritariamente pela emissão de actos administrativos próprio sensu. Ao lado destes, existem múltiplas formas de actuação com idêntica relevância no mundo real da Administração Pública. Assim, torna-se evidente que o particular necessita de ter ao seu dispor meios de tutela que se adeqúem a essas diversas formas de actuação. Como é evidente, esses meios de tutela encontram-se regulados no CPTA, tendo em consideração as especificidades de cada uma das actuações administrativas.
O legislador dividiu o contencioso em duas formas de acção, como se sabe: a acção administrativa especial e a acção administrativa comum. O critério utilizado, embora não tenha sido o mais apropriado do ponto de vista de VASCO PEREIRA DA SILVA, foi o do especial “poder” detido pela Administração em relação àquele concreto comportamento jurídico. Por outras palavras, quando se detecte uma posição de “supremacia” ou “autoridade” da Administração, resultante da atribuição de poderes específicos (atribuídos por via legal), há que utilizar a acção administrativa especial; por outro lado, se não se verificar essa eventualidade “habitual”, a acção adequada é a comum (ressalvados os casos das providências cautelares e outros processos urgentes, que também são acções especiais).
Como resulta do senso comum, a actuação administrativa é, obviamente, uma actividade. Ou seja, traduz-se na adopção de condutas, quer predominantemente jurídicas, quer essencialmente de carácter material. Na actividade administrativa, que comporta diferentes tipos de finalidades (como de prestação e regulação), são emitidos actos administrativos, contratos, operações materiais, entre outros. Na verdade, aquilo que existe é essencialmente de natureza positiva, isto é, movimenta-se na vertente do agir. Ou seja, a dimensão negativa-abstencionista é residual. Porém, embora residual, não pode deixar de merecer uma atenção relevante, na medida em que pode causar problemas jurídicos aos particulares. É sobre esta vertente que farei incidir esta breve reflexão.
Na alínea c) do nº 2 do artigo 37º do CPTA, estabelece o legislador: condenação à adopção ou abstenção de comportamentos, designadamente a condenação da Administração à não emissão de um acto administrativo, quando seja provável a emissão de um acto lesivo, sendo que esta última pretensão de abstenção se encontra igualmente vertida na alínea c) do nº 2 do artigo 2º.
Da análise do preceito pode-se retirar, sobretudo com recurso aos elementos literal e sistemático, que existem duas partes lógicas no 37º/2c: a primeira parte compreende a condenação à adopção e, a segunda, a condenação à abstenção. A primeira, embora não seja o que decorre directamente da análise literal, não abrange a condenação à prática do acto administrativo devido, pois esta é uma das modalidades de acção especial (66º), que é de utilização preferencial (por aplicação do 37º/1): o 37º/2c primeira parte aplica-se somente aos casos de condenação à prática de condutas que não sejam actos administrativos, nos termos do 120º do CPA. No que toca à parte que nos interessa primacialmente, isto é, a segunda parte do 37º/2c, ela compreende quer os actos administrativos (o que é expressamente referido) quer as condutas sem essa natureza.

Existem alguns autores que se pronunciam contra a inserção sistemática da condenação à abstenção de um acto administrativo no âmbito da acção administrativa comum. Diz VASCO PEREIRA DA SILVA que, embora o critério (da exercício de poderes de autoridade) que presidiu à delimitação dos dois tipos de acção mencionado (comum e especial) não tenha sido “feliz”, justificava-se que se mantivesse a coerência na arrumação das pretensões. É que, note-se, quando se condena a Administração à abstenção de um acto administrativo, a decisão vai obrigar a um juízo sobre o exercício do poder administrativo -entrando aqui considerações ínsitas à função administrativa -, o que implicaria a manifestação de uma certa autoridade. Como salienta RUI LANCEIRO, em concordância com o sufragado por SÉRVULO CORREIA, não “procede a argumentação que aqui estaríamos fora do exercício do poder administrativo, por este neste caso não existir. Como já referimos, a definição de que não existe poder administrativo para a prática de um acto ou emissão de um regulamento é um juízo sobre o âmbito do poder administrativo. Só após esse juízo se pode concluir pela inexistência de poder administrativo in casu.
Mas não posso deixar de referir a minha discordância em relação às anteriores teses. Se é certo que no artigo se invoca, expressamente, a possibilidade de condenar à abstenção de um acto administrativo, cumpre ao intérprete, conhecedor do Direito enquanto sistema, delinear o âmbito da norma. Esta é, e seguindo a posição de VIEIRA DE ANDRADE e PEDRO GONÇALVES, uma disposição normativa que necessita de ser alvo de interpretação restritiva. E a estrutura argumentativa é a seguinte: da conjugação da existência de uma certa margem de livre apreciação administrativa com a adopção legislativa de um modelo de “administração executiva” (no qual a possibilidade protecção preventiva é coisa rara) resulta que o tribunal poderá apenas decretar tal tipo de sentenças quando seja mais que manifesta, a final de contas, a inexistência, no caso concreto, de qualquer tipo de discricionariedade. Caso contrário, a disfuncionalidade seria evidente, pela interferência no exercício normal da função administrativa e, por isso, até pela natureza das coisas, terá de ser de utilização restrita, admissível apenas em função da inadequação ou, quando muito, da impossibilidade ou da deficiência da tutela própria dos particulares através da acção administrativa especial de impugnação perante o acto que venha a ser praticado. Tem que haver um interesse em agir qualificado. Porque só faz sentido recorrer à acção inibitória quando o nível de vinculação seja quase total, sob pena de se subverter o sistema e a própria função administrativa, para além de ser um gasto do bem Justiça, em si. Se pode ser justificada a condenação à prática do acto administrativo devido (considerando que as sentenças de condenação fazem parte da lógica de sistemas de plena jurisdição), com as limitações do 71º/2 do CPTA, já não fará sentido esse mesmo tipo de apreciação num plano preventivo, pois, ao contrário do que sucede no primeiro caso, aqui não se consegue identificar com consistência a posição decisória da Administração. Concluindo, este tipo de tutela tem de ficar limitado aos casos em que não exista qualquer possibilidade de exercício típico da função administrativa (as actuações movem-no no âmbito da pura objectividade), não resultando, consequentemente, uma posição de autoridade para a Administração. Exige-se uma dose reforçada de vinculação. Por isso mesmo, a inserção sistemática é adequada.
O recurso à via judicial, neste tipo de acção (que pode ter por objecto qualquer tipo de actuação administrativa), é justificado pela ameaça de lesão ilegal que deve ser baseada na existência de uma situação, de facto ou direito, que permita demonstrar, através de um juízo de razoabilidade, que tal receio é fundado. Ou seja, exige-se que haja probabilidade de emissão do acto. Não é necessário que o acto seja certo, mas também não basta a mera possibilidade: é preciso que seja provável. Essa pode ser encontrada, nomeadamente, no âmbito da promessa administrativa. Fora desse âmbito, como sustenta RUI LANCEIRO, o juízo de probabilidade deve-se basear na existência de indícios minimamente consistentes e objectivos de que é essa a intenção da Administração. O receio da actuação ilícita lesiva deve ser juridicamente qualificado.
A utilidade desta via de tutela preventiva é, à partida, importante. Note-se que é comum a prática de actos que são objecto de execução material imediata, seja porque a emissão do acto, pelo seu próprio tipo legal, pressupões que se proceda de seguida à operação material, seja porque no caso existem razões de urgência na execução. Ora, nestes casos, uma eventual reacção apenas a posteriori, pela via da impugnação, ainda que acompanhada do eventual recurso à tutela cautelar, pode não ser apta a remover completamente os danos.
Porém, não se pode esquecer que, quando o factor «urgência» se manifesta, pode o particular ter acesso, quer à via cautelar, quer a certos processos urgentes. Refira-se que, se a pretensão em estudo é possível, no âmbito de uma acção jurisdicional de plena cognição, não se pode esquecer a extrema relevância de acções cautelares e processos urgentes com um objecto idêntico.
Quando haja urgência na resolução de um litígio, é de utilizar a acção cautelar, por via de regra. Contudo, certos casos não se compadecem com uma mera apreciação provisória, necessitando de uma decisão definitiva (é usual dar-se o exemplo de uma manifestação que se pretende realizar numa data muito próxima). Nestes últimos casos estamos perante processos urgentes (tutela final urgente), entre os quais a intimação para a protecção de direitos liberdades e garantias assume um papel fundamental (109º do CPTA). Note-se que a intimação referida, para além da urgência, tem como pressuposto a impossibilidade/insuficiência de se recorrer à acção cautelar, como sustenta JORGE GUERREIRO MORAIS (conclusão que se pode extrair da redacção do 109º/1, embora não seja unânime a interpretação).
Por estas razões, julgo que, na verdade, o meio previsto no 37º/2c acabe por ter uma relevância bastante marginal, na vida prática. É que, quando se introduz nos seus pressupostos um grau considerável de probabilidade, a mesma é, na maior parte das vezes, coincidente com a existência de urgência, que permite, pela sua natureza, o acesso a outros meios mais expeditos.

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