terça-feira, 25 de maio de 2010

Do 8 ao 80 – as providências cautelares no contencioso administrativo


“Justifica-se uma particular cautela, da parte dos tribunais administrativos, na concessão de providências que impliquem a “intimação para abstenção de uma conduta por parte da Administração” (CPTA, art. 112.º/2 f)). Uma excessiva generosidade dos tribunais na concessão deste tipo de providência cautelar, sem a rigorosa observância do princípio da separação dos poderes, poderia, em verdade, quando generalizada, conduzir rapidamente à paralisação da Administração activa – o que não corresponde ao espírito da lei.”
Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida in “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, 3.ª ed., revista e actualizada, pg. 65


O regime dos “processos cautelares” em contencioso administrativo surge nos artigos 112.º e seguintes do CPTA. Procuraremos, sucintamente, levantar este problema de verdadeira revolução do paradigma quanto às providências cautelares em sede de contencioso administrativo. Se, antes, assistíamos a uma tutela reduzida a um extremo quase inconstitucional (mesmo inconstitucional supervenientemente, por omissão, desde 1997), passámos, hoje, ao extremo oposto, com a acção da Administração condicionada a um ponto tal que muitas das providências que pretendem ser provisórias acabam por ter efeitos definitivos, estando até posta em causa a separação de poderes e a liberdade da administração para exercer e decidir dentro do seu espaço na função administrativa.
Importará lembrar o contexto geral, de Processo civil, em que surge a tutela cautelar – e os requisitos muito mais estudados nessa sede. Os procedimentos cautelares surgem como composição provisória da situação controvertida para assegurar a utilidade da decisão e efectividade da tutela jurisdicional (art. 2.º/2 in fine CPC), fundamentando-se constitucionalmente na garantia do acesso ao direito e aos tribunais constante logo no art. 20.º/1 CRP.
Durante longos anos apenas recorrendo à aplicação subsidiária do regime do CPC conhecíamos as providências cautelares com um âmbito maior no contencioso administrativo. Por várias razões, entre outras, pela “cautela” maior a aplicar estas regras, não permitia, esse regime, os exageros a que hoje nos parece ser possível chegar com a cláusula do artigo 112.º CPTA.
A propósito das providências cautelares em Processo civil, defende MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[1] poderem prosseguir uma de três finalidades: a necessidade de garantir um direito, a definição de uma regulação provisória ou transitória ou a antecipação da tutela pretendida. A funcionalidade da tutela cautelar foi posta recentemente em causa por RUI PINTO[2], tanto relacionando o direito acautelando com o direito subjectivo[3] em discussão, como integrando no mérito cautelar, como elemento funcional, a “constituição de uma situação jurídica acautelante de finalidade concreta pedida pelo requerente e conteúdo fixado pelo juiz”. Assim, para além de não autonomizar finalidades (e tendemos a concordar, pelo artificialismo da separação – parece-nos prosseguirem-se sempre as três finalidades referidas, mesmo que alguma seja tendencialmente mais intensamente prosseguida), RUI PINTO deixa-nos uma pista fundamental: o autor tem que expressar a finalidade que quer prosseguir, ainda que se engane na providência a pedir, tem é que ser claro em expressar se quer garantir um direito existente ou emergente ou se quer meramente defender uma garantia. A finalidade pedida pelo autor desenhará o campo de actuação do juiz.
Encontra, ainda TEIXEIRA DE SOUSA[4], como característica das providências cautelares, serem provisórias[5] (a sua tutela é qualitativamente diferente daquela tutela conseguida com a acção principal, art. 383.º/1 CPC), pelo que é necessária a substituição dessa tutela pela decisão dessas acções principais; serem instrumentais[6], e representarem uma summaria cognitio, em nome das exigências de celeridade que as fundam, pretendendo evitar lesões ou a sua continuação, manifestando-se essa apreciação sumária logo na inexistência, para certas providências cautelares, de audição da contraparte – um desvio ao princípio do contraditório constante do art. 3.º/2 CPC, previsto em “dois níveis”: proibindo-se audição do requerido (arts. 394.º e 408.º/1 CPC) e permitindo-se que a providência seja decretada sem audição do requerido (art. 385.º/1 CPC) – mecanismos deste tipo não encontramos em contencioso administrativo (e não deveremos encontrar, pelas suas características…), devendo todos os contra-interessados serem citados nos termos do artigo 117.º CPTA.
Importa, ainda, observar os pressupostos decorrentes da diferenciação entre o objecto da providência cautelar e o da acção principal – no procedimento cautelar há que verificar os “fundamentos da necessidade da composição provisória através do decretamento da garantia, da regulação transitória ou da antecipação da tutela”[7], acrescentando-se aos factos constitutivos da situação jurídica alegada. Identifiquem-se, então, os pressupostos do periculum in mora e do fumus boni iuris. Quanto ao primeiro, importa verificar se há iminência de lesão. Quanto ao segundo, relaciona-se com a prova sumária a realizar pelo autor: a probabilidade séria do direito alegado e do receio da lesão, veja-se os arts. 384.º/1, 387.º/1, 407.º/1 (para o arresto) e 421.º/1 (para o arrolamento) CPC, bastando como grau de prova a mera justificação, mantendo-se a repartição do ónus segundo as regras gerais (342.º/1 e 2 CC).
Importará, então, distinguir as duas “providências especificadas” de garantia, não deixando de sublinhar, à partida, o regime do art. 381.º CPC, adequando as providências aos direitos a tutelar (o autor pode pedir quase “o que quiser” desde que demonstre a finalidade e a adequação[8]) que poderia, sempre, demonstrando-se mais adequado outro caminho, determinar outra via para o autor.
Parece-nos oportuno fazer este enquadramento e lembrar aquelas que são, afinal, as regras supletivamente aplicáveis, da lei de processo civil (1.º in fine do CPTA), até para referir a relação entre o direito acautelando e o direito subjectivo, estudada por RUI PINTO, a qual deve ser aprofundada em outros locais para maiores desenvolvimentos em contencioso administrativo. Os pressupostos são, já sabemos, os mesmos (atente-se na “transposição” feita pelos artigos 112.º e seguintes do CPTA).

Deste enquadramento, passe-se ao histórico. Só desde 1985 é que se parece colocar o problema mais amplo das providências cautelares, até aí apenas se admitindo a “suspensão da eficácia de actos administrativos” (76.º LPTA), seguindo-se a “intimação para um comportamento” (86.º LPTA) – este âmbito excessivamente restrito colidiria com o disposto no artigo 268.º/4 CRP (só em vigor desde 1997), impondo a tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados, concretizando a necessidade da possibilidade de adopção de medidas cautelares adequadas.
FREITAS DO AMARAL e AROSO DE ALMEIDA[9], entre outros, relacionam, ainda, este aprofundamento da tutela cautelar (imposto pela revisão constitucional) com o novo destaque dado à tutela principal urgente, autonomizado no título IV do CPTA – não deixando de diferenciar os regimes (remetemos para outro espaço o aprofundamento dessa questão).
O processo cautelar em contencioso administrativo desenvolve-se, então, com os mesmos requisitos do processo cautelar civil, já desenvolvidos acima.
Com a Reforma, é concedido aos tribunais administrativos este “poder de decretar todo o tipo de providências cautelares” (na expressão de FREITAS DO AMARAL e AROSO DE ALMEIDA) – embora a doutrina já fosse reconhecendo antes o “princípio de que os tribunais administrativos já podiam, até aqui, conceder providências cautelares não especificadas, recorrendo, para o efeito, à aplicação subsidiária do CPC.
Da lógica subsidiária do CPC passámos ao actual CPTA, com providências cautelares, antecipatórias (procurando evitar/prevenir prejuízos decorrentes de atrasos na satisfação do direito ameaçado – destinadas a realizar o direito previsivelmente a reconhecer em acção principal) ou conservatórias (acautelando o efeito útil da acção principal) – o problema surge, parece-nos, quando asseguram esse “efeito útil” e a própria acção principal o perde. Poderá até acontecer acautelar-se um efeito útil que em nada é conforme ao Direito.
A legitimidade surge também espelhada da para a acção principal, e o pedido e causa de pedir deverão ter esta íntima relação com os da acção principal – continua assim a ideia de “processo acessório” que alguma doutrina vem a referir.
Refira-se, ainda, um critério que se impunha na anterior lógica e que hoje parece fundamental não esquecer - a exigibilidade de que o dano criado pela execução do acto fosse irreparável e que da providência cautelar não resultasse o prejuízo grave para o interesse público.
A abertura da cláusula do artigo 112.º/1 CPTA não pode colidir com a ideia de interesse público, fundamental em direito administrativo, material e adjectivo, e com o esquema que a melhor tradição jurídica desenvolveu para o direito civil – acreditamos que o Direito limitará, pelo menos assim, o “80”, ou o extremo.
Fará sentido remeter para o trabalho de outra colega (em http://orisocontenciosoal.blogspot.com/2010/05/as-providencias-cautelares-abrem-porta.html) para o desenvolvimento do problema do “controlo jurisdicional de mérito”, relembrando a discussão começada por ADELAIDE MENEZES LEITÃO e a posição de TIAGO ANTUNES, segundo a qual há de facto algum controlo de mérito na tutela cautelar – mais não desenvolvemos para não entrar no espaço desse tema, que a colega JOANA VICENTE tão bem abordou.
Falemos, ainda, do “triângulo das bermudas” mapeado por TIAGO ANTUNES[10], cujo primeiro “vértice” será ocupado pelo decretamento provisório das providências. O decretamento provisório da providência cautelar rege-se pelo disposto no artigo 131.º CPTA, impondo-se aqui uma tramitação própria e um regime de notificações que deve ser obedecido – este regime poderá ser motivado ou pela urgência especial ou pela necessidade de uma protecção qualificada de direitos, liberdades e garantias (como decorrência do artigo 20.º/5 CRP). A posição do autor sobre o regime deste artigo é diferente da de outra doutrina e parece-nos útil referi-la aqui: “nem os direitos, liberdades e garantias são tutelados apenas pelo art. 131.º, nem o 131.º serve exclusivamente para tutelar direitos, liberdades e garantias (…) o fundamento e a razão de ser do decretamento provisório de providências cautelares consiste, não na tutela de direitos, liberdades e garantias, mas sim na tutela de situações de urgência agravada”. Adiante, o autor segue esta avaliação da dispensa ou aligeiramento de algumas formalidades neste processo particularmente célere de adopção (ainda que provisória) de providências cautelares. Não estaremos, portanto, perante providências cautelares típicas e nominadas aplicáveis sempre que esteja em risco um direito, liberdade ou garantia, antes perante um “decretamento provisório – ou provisionalíssimo – de qualquer medida cautelar (…) desde que haja especial urgência” – colocar-se-á, então, a pergunta: a “especial urgência” servirá de fundamento até onde, na compressão da liberdade da administração e no espaço de actuação dos tribunais?
Ainda sobre o regime do artigo 121.º CPTA, encontra TIAGO ANTUNES um “terceiro vértice”, encontrando uma sobreposição de regimes – na tutela do mesmo tipo de situações – com o disposto nos artigos 109.º e seguintes do mesmo Código. O autor preocupa-se aqui com “mais uma fonte de preocupações para os particulares que carecem de tutela jurisdicional urgente e definitiva”, uma verdadeira “falta de rumo” – do outro lado, poderíamos dizer que a Administração pode “sofrer disparos por todos os lados”!
Por último, e muito sucintamente, refiram-se as características estudadas por VIEIRA DE ANDRADE[11] - a finalidade própria do processo, a plenitude da protecção (decorrente da universalidade das providências admitidas), o requisito da perigosidade, a “juridicidade material como padrão decisório” e – o que nos parece fundamental como “limite ao 80” – a “proporcionalidade na decisão de concessão”; ainda refere o autor a necessidade e adequabilidade das providências decretadas e a provisioriedade e temporalidade da decisão e do conteúdo, sublinhando-se a instrumentalidade estrutural do processo e a necessária reversibilidade da providência.
Parece-nos que o problema se coloca neste último aspecto: a reversibilidade da providência deve ou não ser assegurada, e quando colidir com a necessidade de tutela, o que prevalece?
Parece-nos que só pudemos levantar algumas pontas e que este tema carece de muito mais desenvolvimentos do que um trabalho deste tipo pode alcançar.
A celeridade do processo cautelar terá transparecido do objecto para a regulação, isto é, foi ainda mais célere a evolução do Direito processual cautelar administrativo que a do Direito processual administrativo – mais rápido se passou do 8 a um 80.
Acreditamos que ainda não se terá alcançado plenamente o “80” (usando este número como símbolo de um exagero intolerável), quer pelos princípios que se conseguem retirar da evolução civilística, quer pelas normas de direito público e pela necessidade de se acautelar o interesse público, concretizada na instrumentalidade do processo e, mais ainda, nas necessidades de proporcionalidade e adequação – juízos que devem ser feitos antes de decretar qualquer providência cautelar.
Queremos, no entanto, deixar o alerta: deve a cláusula aberta do artigo 112.º/1 CPTA ser contrabalançada por normas que impeçam o “80”, impondo-se “cautelas” na evolução e aplicação destes regimes.
Acreditamos, ainda, que o estudo desta evolução – “do 8 ao 80” – poderá ser também útil como padrão para olhar para o contencioso administrativo na sua globalidade, podendo haver mais aspectos que levem todo o Contencioso a colocar em risco a separação de poderes e a liberdade (necessária!) de actuação da Administração, em outros “80s” que importa, certamente, acautelar.

Miguel da Câmara Machado
Aluno n.º 16791 – ST 10



Bibliografia
- Almeida, Mário Aroso de – “Medidas cautelares no ordenamento contencioso” in Direito e Justiça, vol. IX, 1997, tomo 2, pp.154 ss.
- Amaral, Diogo Freitas do – “As providências cautelares no novo contencioso administrativo” in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 43, pp. 4 ss.
- Amaral, Diogo Freitas do; Mário Aroso de Almeida – Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª ed., revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2007
- Andrade, José Carlos Vieira de – A Justiça Administrativa (lições), 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, pp.333 ss.
- Antunes, Tiago – “O «triângulo das bermudas» no novo Contencioso administrativo”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento, vol. II, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Lisboa, 2006, pp. 711 e ss.
- Pinto, Rui – A questão de mérito na tutela cautelar, tese, Lisboa, 2007.
- Sousa, Miguel Teixeira de – Estudos sobre o novo Processo Civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pp. 226 ss.
- Vicente, Joana – As providências cautelares abrem a porta a controlo jurisdicional de mérito? in http://orisocontenciosoal.blogspot.com/


[1] Sousa, Miguel Teixeira de – Estudos sobre o novo Processo Civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pp. 226 ss.
[2] Pinto, Rui – A questão de mérito na tutela cautelar, tese, Lisboa, 2007.
[3] Pinto, Rui – A questão de mérito …, pg. 434
[4] Sousa, Miguel Teixeira de – Estudos sobre …, pg. 228
[5] Apresentando a tutela cautelar como permanente, mas não definitiva e como modo de composição de litígios: Pinto, Rui – A questão de mérito …, pp. 301 ss.
[6] Contra esta característica como intrínseca da tutela cautelar, veja-se, novamente, Pinto, Rui – A questão de mérito… pp. 300 ss.
[7] Sousa, Miguel Teixeira de – Estudos sobre …, pg. 232
[8] Não esquecemos a subsidiariedade das providências não especificadas perante as especificadas.
[9] Amaral, Diogo Freitas do; Mário Aroso de Almeida – Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª ed., revista e actualizada, pp. 98 ss.
[10] Antunes, Tiago – “O «triângulo das bermudas» no novo Contencioso administrativo”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento, vol. II, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Lisboa, 2006, pp. 711 e ss.
[11] Andrade, José Carlos Vieira de – A Justiça Administrativa (lições), 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, pp.333 ss.

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