quinta-feira, 20 de maio de 2010

A exigência de recurso hierárquico é constitucional?

O presente trabalho tem por objectivo responder a uma questão algo debatida na nossa doutrina. A questão coloca-se no âmbito da acção administrativa especial, mais especificamente na matéria da impugnação de actos administrativos.
            Como sabemos é necessário que se verifiquem certos requisitos para se poder afirmar que estamos perante um acto administrativo impugnável. Por exemplo, é necessário que o acto administrativo produza eficácia externa. O requisito que nos interessa aqui debater é o da definitividade vertical do acto administrativo impugnável que consiste em saber se a impugnação contenciosa de actos administrativos se encontra dependente da prévia utilização pelo impugnante de vias de impugnação administrativa, mais especificamente a interposição de recurso hierárquico necessário.
            A verdade é que o CPTA não exige, como exigia no passado, em termos gerais, que para se poder impugnar um acto administrativo judicialmente seja previamente necessário recorrer a nível administrativo para o superior hierárquico do autor do acto. Parece assim correcto concluir com o Professor Aroso de Almeida que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa. E, portanto, de que não é necessário, para haver interesse processual na impugnação perante os tribunais administrativos, que o autor demonstre ter tentado infrutiferamente obter a remoção do acto que considera ilegal por via extrajudicial.
            Mas isto em termos gerais. Imagine-se, porém, que uma lei especial determina que num especial caso seja necessário um recurso administrativo antes de se poder recorrer contenciosamente. Esta imposição é constitucional?
            Antes de responder à pergunta acabada de formular, que é o objectivo deste trabalho, quero apenas salientar que actualmente, após a entrada em vigor do actual CPTA ainda existem disposições legais que consagram o requisito da definitividade vertical e a doutrina questiona se com a entrada em vigor do CPTA estas disposições foram ou não revogadas, sabendo-se que não houve uma disposição expressa nesse sentido. Existem duas posições nesta matéria. Uma, nomeadamente defendida pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, que afirma que se deve entender que estas disposições foram revogadas pelo CPTA mesmo sem haver uma disposição expressa nesse sentido. Outra, defendida nomeadamente pelo Professor Aroso de Almeida, que defende que “o CPTA não tem, porém, o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se consideram extintas.”.
            Após esta pequena ressalva voltemos então ao tema central do trabalho.
            Perguntava então se seria constitucional a imposição legal do recurso hierárquico necessário para possibilitar a impugnação contenciosa do acto administrativo.
            Surge novamente divergência doutrinária. Vou começar por enumerar as posições tomadas pela doutrina a respeito desta questão dando seguidamente a minha opinião.
            A primeira opinião é no sentido da inconstitucionalidade desta imposição. A base desta posição é o facto de na revisão constitucional de 1989 ter sido eliminada do então art. 268º nº3 a referência que dele inicialmente constava à definitividade dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa.
            Como defensor desta doutrina temos o Professor Vasco Pereira da Silva que já antes da revisão constitucional defendia que a exigência de recurso hierárquico necessário era inconstitucional. Já antes da reforma o Prof. defendia esta tese baseado na violação do princípio constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º nº 4 CRP), “pois a inadmissibilidade de recurso contencioso, quando não tenha existido previamente o recurso hierárquico necessário, equivale, para todos os efeitos, a uma verdadeira negação do direito fundamental de recurso contencioso”, na violação do princípio constitucional da separação de poderes entre a Administração e a Justiça, (266º ss da CRP) “por fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da não utilização de uma garantia administrativa (que não pode ser outra coisa se não facultativa) ”, do princípio constitucional da desconcentração administrativa (art. 267º nº2 CRP), e do princípio da efectividade da tutela (art. 268º nº4 CRP). Após a revisão constitucional o Prof. entende que estes argumentos se mantêm actuais e que ainda saem reforçados.
            A segunda opinião vai no sentido de considerar constitucional uma possível exigência de recurso hierárquico necessário para se poder recorrer à via contenciosa. Defendem esta posição nomeadamente os Professores Vieira de Andrade e Aroso de Almeida.
            Defende este último a solução da não inconstitucionalidade com base no argumento – “subscrito, aliás, tanto pelo Tribunal Constitucional como pelo Supremo Tribunal Administrativo – de que não cabe à Constituição estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação dos actos administrativos, em termos de se poder afirmar que eles só são legítimos se forem objecto de expressa previsão constitucional.” Contudo, o pensamento do Prof. Aroso de Almeida não é assim tão radical, pois logo em seguida refere que “questão diferente já se colocará se o legislador ordinário impuser requisitos de tal modo excessivos e desproporcionados que se concretizem na imposição de um condicionamento ilegítimo ao direito fundamental de acesso à justiça administrativa.”.
            Cabe agora tomar posição sobre este tema.
            Em primeiro lugar passo a transcrever o artigo em relação ao qual se levanta o problema de constitucionalidade, actualmente o artigo 268º nº4.
Artigo 268º
4 – É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.
            Parece-me que estamos perante um problema que em certa medida revela mais em termos de Direito Constitucional do que em termos de Direito Administrativo.
            Efectivamente a questão que se deve colocar é a da admissibilidade do ponto de vista constitucional da limitação que é feita pela imposição do recurso hierárquico necessário ao direito de tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
            Dispõe o artigo 17º da CRP que o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga, e parece ser doutrina unânime que a impugnação contenciosa e, em geral a tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos previsto no art. 268º nº 4 é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, sendo consequentemente aplicável o respectivo regime. Chegando a esta conclusão torna-se imprescindível recorrer ao artigo 18º da CRP para resolver esta questão.
            Diz-nos o art. 18º nº 2 que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, acrescentando o nº 3 que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral o abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
            Como refere o Professor Jorge Miranda “para se apreender o pleno alcance da regra do carácter restritivo das restrições de direitos, liberdades e garantias, há que começar por distinguir o conceito de restrição de outros conceitos, como os de limite ao exercício de direitos, condicionamentos, regulamentação, concretização legislativa, auto-ruptura da Constituição, dever e suspensão.
A restrição tem que ver com o direito em si, com a sua extensão objectiva; o limite ao exercício de direitos contende com a sua manifestação, com o modo de se exteriorizar através da prática do seu titular. A restrição afecta certo direito (em geral ou quanto a certa categoria de pessoas ou situações), envolvendo a sua compressão ou, doutro prisma, a amputação de faculdades que a priori estariam nele compreendidas; o limite decorre de razões ou condições de carácter geral, válidas para quaisquer direitos, como a moral, a ordem pública e o bem-estar numa sociedade democrática.
O limite pode desembocar ou traduzir-se qualificadamente em condicionamento, ou seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a prescrição de um prazo (para o seu exercício), ou de participação prévia (v.g., para a realização de manifestações), ou de registo (para o reconhecimento da personalidade jurídica de associação) (…).
O condicionamento não reduz o âmbito do direito, apenas implica, umas vezes, uma disciplina ou uma limitação da margem de liberdade do seu exercício, outras vezes um ónus.”.
            Depois desta distinção parece-me óbvio que exigência de recurso hierárquico necessário, desde que não prejudique o autor em termos de prazos, não se deve reconduzir à figura da restrição, mas sim à figura do limite ou mais correctamente do condicionamento. Depois desta conclusão é desnecessário a ponderação do nº3 do art. 18º pois este só é aplicável a casos de restrição de direitos fundamentais.
            Concluo então que a exigência de recurso hierárquico necessário é conforme à constituição por se tratar apenas de um condicionamento perfeitamente aceitável ao exercício de um direito e que poderá trazer mais benefícios à justiça do que prejuízos pois haverá casos em que o superior hierárquico revogará o acto do inferior hierárquico evitando assim que o particular tenha que recorrer a tribunal e evitando também o entupimento generalizado de processos que existe nos tribunais portugueses com processos que chegam a levar anos a ser resolvidos.
            Por outras palavras parece-me uma medida legislativa que em certos casos é perfeitamente justificável e benéfica e, mais importante que isto, tal como ficou provado pela análise do art. 268º nº 4, 17º e 18º da CRP, não viola a Constituição.


João Lima
Subturma 4
Nº 16706

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