segunda-feira, 17 de maio de 2010

Recursos Hierárquicos Necessários: Passado ou Presente?



Este trabalho versa sobre a questão controvertida (uma das “poucas” do Direito) sobre a necessidade ou, por oposição, mera utilidade, do recurso hierárquico administrativo, como condição de acesso à via contenciosa de resolução de litígios emergentes entre a Administração e particulares. Discussão esta que se torna mais acesa face a alterações legislativas, nomeadamente à Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) pelas Leis Constitucionais nº1/89 e 1/97 (correspondentes, respectivamente, à 2ª e 4ª Revisão Constitucional), no seu art.º268.º, nº4, bem como alterações ao art.º51.º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo (doravante, CPTA).
Em jeito de introdução poderá dizer-se que a impugnação de actos administrativos se insere nas designadas Acções Administrativas Especiais, visando a nulidade ou declaração de inexistência de um acto administrativo, constituindo-se como um meio de controlo da sua validade e, portanto, também de defesa dos particulares perante a autoridade da Administração.

A discussão inicia-se, desde logo, ainda na vigência da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante LPTA) e não apenas aquando da entrada em vigor do CPTA, como o Acórdão do STA de 11/03/2010 parece sugerir, quando certa doutrina suscita a questão da inconstitucionalidade superveniente do seu art.º25.º (que exigia a definitividade e executoriedade dos actos para que fosse possível o seu recurso contencioso), face ao art.º268.º, nº4 da CRP (versão de 1989), que, por sua vez, apenas exigia a lesividade dos actos como condição para a referida recorribilidade.
Deste modo, uma posição da doutrina defendia a compatibilização das duas normas (como Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade), ao passo que outra posição (Vasco Pereira da Silva) defensava a inconstitucionalidade das normas que exigissem um recurso hierárquico como condição de acesso à via contenciosa.
A questão foi então levada ao Tribunal Constitucional (TC), que se pronunciou pela não inconstitucionalidade do art.º25.º da LPTA.
A polémica veio a ser novamente suscitada pela nova redacção da CRP, dada pela Lei nº1/97, de 20 de Agosto, tendo o TC mantido a sua posição, nomeadamente no Acórdão nº425/99.
Com a entrada em vigor do CPTA, verifica-se que, no seu art.º51.º, nº1, em conformidade com a CRP, se exige, dentro dos actos com eficácia externa, apenas a sua lesividade como condição de impugnabilidade contenciosa. Ou, no entendimento de Vasco Pereira da Silva, a eficácia externa ou a lesividade como condições autónomas e auto-suficientes para a recorribilidade directa dos actos administrativos.

Passando a argumentos em concreto:
A favor da sustentabilidade dos recursos hierárquicos necessários pronunciaram-se Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade, defendendo a compatibilização entre os arts.º268.º, nº4 da CRP e 51.º, nº1 do CPTA, com as normas legais que, expressamente, exigissem recurso hierárquico, bem como com as anteriores à vigência do CPTA que contivessem essa mesma exigência. Isto através de uma interpretação restritiva do 51.º/1 do CPTA que, apesar de revogar a regra geral da necessidade de recurso hierárquico, não revogaria as regras especiais que impusessem tal condição, sendo que estas apenas poderiam ser revogadas por disposição legal expressa.
Contra este entendimento insurge-se Vasco Pereira da Silva, defendendo a inconstitucionalidade dos recursos hierárquicos necessários por violação de diversos princípios constitucionais, a saber:
• O princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares e da efectividade dessa mesma tutela (art.º268 da CRP), assente no entendimento de que o impedimento, do particular, ao acesso ao recurso contencioso, por não ter havido anterior recurso hierárquico, representa uma “negação do direito fundamental do recurso contencioso”;
• O princípio da separação entre Administração e Justiça (arts.º114.º, 205.º e ss, 206.º e ss, todos da CRP), por se fazer depender o acesso à via contenciosa de mecanismos administrativos prévios;
• O princípio da desconcentração administrativa (art.º267.º, nº2 da CRP), que exige uma imediata recorribilidade dos actos dos subalternos lesivos, sem prejuízo da competência revogatória de que dispõe o superior hierárquico.

O mesmo autor entende ainda que o CPTA vem afastar inequivocamente a necessidade de recurso hierárquico, sendo a via contenciosa directamente acessível a “qualquer acto lesivo de direitos dos particulares, abandonando a noção autoritária de acto definitivo e executório, e colocando a tónica na protecção jurídica subjectiva” (V.PEREIRA DA SILVA, «Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo», 2000, Almedina, cit., p.81). Posição fundada nos seguintes argumentos:
• A sustentação de uma interpretação literal do art.º51.º, nº1 do CPTA, em conformidade com o 268.º, nº4 da CRP, quando apenas se refere à lesividade dos actos;
• O alargamento geral das garantias administrativas, nomeadamente a atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa, aquando da utilização das mesmas (art.º59.º, nº4 do CPTA), desempenhando uma “função de composição preventiva de litígios contenciosos” (V.PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2009, Almedina, cit., p.352);
• O não impedimento da possibilidade imediata de impugnação contenciosa, mesmo quando se recorreram a estas garantias administrativas (art.º59.º, nº5 do CPTA).
Desta forma, o particular pode optar entre recorrer desde logo ao tribunal ou utilizar previamente uma garantia graciosa, tornando-a meramente “útil”, por oposição necessária.

No entanto, a jurisprudência não tem seguido este entendimento, sustentando, pelo contrário, na esteira de Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade, a compatibilização desta nova norma processual (que impõe uma regra geral de desnecessidade de recurso hierárquico) e a necessidade de recurso hierárquico nos casos em que há disposição especial nesse sentido, ou no caso das normas anteriores à vigência do CPTA com a mesma imposição. Para tal apontam diversos argumentos. Desde logo, é entendido que um acto de um subalterno não reveste carácter lesivo, mas apenas uma mera potencialidade de lesão, que ainda poderá ser alterada por órgãos superiores, o que não justifica o recurso directo aos tribunais. Para além disso, a tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares não é posta em causa, nem tão-pouco restringida, visto que será sempre possível a impugnabilidade do acto por via contenciosa, após o esgotamento das vias graciosas, tratando-se apenas de “condicionamento legítimo do direito de recurso contencioso” (Acórdão STA de 28/12/2006). O entendimento segue no sentido de que uma hipótese de inconstitucionalidade só se configuraria se fosse suprimido ou restringido intoleravelmente o direito de acesso ao tribunal, consagrado no art.º20.º da CRP, prejudicando a tutela dos direitos, o que, pelo acima disposto, não acontece. Por outro lado, a impugnação administrativa necessária gera a suspensão dos efeitos do acto impugnado (arts.º163, nº1 e 170.º do CPA), constituindo-se como uma garantia bastante vantajosa, sob esse ponto de vista, para o particular.
Tendo, com o devido respeito, a concordar com esta última posição, quer do ponto de vista legal, quer por força das virtualidades que poderá trazer na prática. Actualmente, com a “massificação” do recurso ao contencioso (às vezes por “quase nada”), há que atender e ter sempre em conta, razões de ordem prática, para que a Justiça possa efectivamente ser aplicada. Para que esta efectivação tenha, então, lugar, é necessário não menosprezar ou, de certa forma, “subestimar” o principio da celeridade dos processos (art.º20.º, nº4 da CRP), que, enquanto princípio sistemático conformador dos moldes em que funciona a Justiça e o Direito, deverá também ser aplicável no âmbito da Administração e sua articulação com o Direito (como aliás demonstra o art.º10.º do CPA, enquanto afloramento do mesmo princípio).
Deste modo, a necessidade de um recurso hierárquico (nos casos previstos) poderá ser uma forma de evitar o recurso desnecessário à via contenciosa, “aliviando” os tribunais, e resolvendo de forma mais simples, eficaz, célere (e menos dispendiosa), um conflito que, de outro modo, se poderia prolongar de forma incomportável para o particular. Isto tendo sempre presente que todos os seus direitos estão salvaguardados pela via contenciosa caso posteriormente o deseje.
Joana Branco, subturma 11
nºaluna 16671

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