quinta-feira, 13 de maio de 2010

Sobre A (in)constitucionalidade Do Alargamento E Da Compressão Do Âmbito Da Justiça Administrativa Atribuída Aos Tribunais Administrativos pela CRP


O seguinte trabalho tem por objectivo perceber qual o âmbito de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos pela Constituição e em seguida saber se é constitucional ou não a compressão ou o alargamento deste âmbito por parte do legislador. Vou separar o trabalho em duas partes. A primeira vai tratar do que se deve entender por relação jurídica administrativa, pois este conceito é fundamental para entender o âmbito da jurisdição administrativa atribuída aos tribunais administrativos para Constituição. A segunda parte tratará do problema da constitucionalidade ou não constitucionalidade das compressões e extensões do âmbito de jurisdição atribuído pela Constituição aos tribunais administrativos por parte do legislador ordinário.

1. O Conceito de Relações Jurídicas Administrativas na Constituição

Dispõe o artigo 212º nº 3 que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”.
O artigo não nos diz o que se deve entender por relação jurídica administrativa, mas saber o que é uma relação jurídica administrativa é fundamental para perceber qual o âmbito de jurisdição que é atribuída aos tribunais administrativos pela Constituição.
Como refere o Prof. Vieira de Andrade em (A Justiça Administrativa, 10ª Edição) o conceito de relação jurídica pode ser tomado em diversos sentidos. Passo a enumerar:
1. Sentido Subjectivo – Seria relação jurídica administrativa qualquer relação jurídica em que interviesse a Administração Pública. Por exemplo um contrato celebrado entre a Câmara Municipal de Faro e um particular para a construção de um edifício de habitação social. O relevante não seria o direito chamado a regular o caso ou a forma de actuação da Administração Pública, mas apenas a sua presença.
2. Sentido Objectivo – Tomada neste sentido, relação jurídica administrativa seria a relação em que interviesse entes públicos, mas apenas quando estas relações fossem reguladas pelo Direito Administrativo. Neste sentido seriam excluídas algumas relações jurídicas em que interviesse a Administração Pública e seriam incluídas no conceito de relação jurídica administrativa algumas relações em que não entra a Administração Pública, como é o caso das relações em que interviessem entes privados dotados de poderes públicos.
3. Sentido Funcional – Segundo este modo de entender o conceito, diz o Prof. Vieira de Andrade que o que é importante para saber se estamos perante uma relação jurídica administrativa é verificar se o ente envolvido está a praticar ou não uma função administrativa. “Resultaria do contexto constitucional que o domínio considerado próprio dos tribunais administrativos abrange as relações jurídicas que correspondam ao exercício da função administrativa, entendida em sentido material. Ora, tal como assim se excluem da justiça administrativa os litígios relativos às actividades materialmente políticas, jurisdicionais e legislativas, remetendo para uma distinção substancial entre as funções do Estado, também se identificaria, para esse efeito, uma função que pode ser desenvolvida por particulares e não tem de estar estatutariamente sujeita ao Direito Administrativo.”.
Como já referi no início do texto, a questão do que se deve entender por relação jurídica administrativa não é resolvida na Constituição nem na lei, pois o artigo 1º, nº 1 do ETAF limita-se a dizer que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”.
Perante isto, concluí o Prof. Vieira de Andrade que o mais prudente será partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração. É importante referir que o Prof. entende que esta definição substancial se refere apenas ao âmbito nuclear ou de princípio da jurisdição administrativa, não excluindo soluções justificadas de alargamento ou de compressão da respectiva competência por parte do legislador.
Parece também ser este o entendimento do Prof. Aroso de Almeida quando em anotação ao artigo 212º na CRP anotada dos Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros escreve que (“Não é isenta de controvérsia, na doutrina, a questão de saber o que se deve entender por relações jurídicas administrativas e fiscais. O melhor critério parece ser, no entanto, aquele para o que aponta o próprio sentido literal da expressão: são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo e de Direito Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal.”).
Podemos então concluir, com os Profs. Vieira de Andrade e Aroso de Almeida que para a Constituição relações jurídicas administrativas são as relações jurídicas que são reguladas pelo Direito Administrativo.

2. Sobre a Constitucionalidade ou Não das Compressões e Extensões do Âmbito de Jurisdição Atribuído aos Tribunais Administrativos Pela Constituição.

Delimitado o âmbito de jurisdição que é atribuída pela CRP aos tribunais administrativos podemos agora tratar do problema de saber se eventuais compressões ou extensões deste âmbito são permitidas pela Constituição.
O problema surge após a revisão constitucional de 1989 quando no artigo 214º nº 3 (actualmente 212º nº 3) se passa a dispor que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”. Antes da revisão constitucional a jurisdição administrativa apenas estava incumbida de dirimir os litígios cuja apreciação não fosse atribuída por lei à competência de outros tribunais. Pergunta-se então se este artigo consagra uma reserva absoluta de jurisdição, impedindo o legislador de atribuir a tribunais judiciais a resolução de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e proibindo o legislador de atribuir a resolução de litígios emergentes de relações jurídicas não administrativas a tribunais administrativos.
Para Gomes Canotilho e Vital Moreia em anotação ao artigo 214º (actual 212º) na sua CRP Anotada, 3ª edição parece não existir dúvidas. Com a revisão constitucional de 1989 pretendeu-se efectivamente criar uma ordem de tribunais com competência exclusiva para a resolução dos litígios decorrentes de relações jurídicas administrativas, não podendo os tribunais administrativos julgar litígios que não decorressem destas mesmas relações. Escrevem os referidos Profs. : (“A letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções, no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões ou que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais. E se é certo que o primeiro ponto não causa dificuldades, já o segundo as levanta, visto não serem poucas as áreas em que a lei tradicionalmente confia a outros tribunais a competência para o julgamento de questões que em princípio se devem ter por administrativas. É o caso do julgamento dos recursos da aplicação de coimas, confiado aos tribunais judiciais…”).
Contudo, o entendimento da maioria da doutrina foi no sentido oposto, admitindo em certos casos, desde que devidamente justificados, a atribuição de competência a tribunais judiciais para a resolução de litígios decorrentes de relações jurídicas administrativas e a atribuição de competência a tribunais administrativos para a resolução de certos casos em que não se está perante relações jurídicas administrativas, desde que devidamente justificados. Esta foi também a opção do legislador como se pode observar pela análise do artigo 4º do ETAF.
Seguindo este entendimento diz o Prof. Vieira de Andrade que o art. 212º não deve ser entendido como um “imperativo estrito, contendo uma proibição absoluta, mas (…) como uma regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do modelo.”.
Refere ainda o Prof., com o objectivo de afastar o entendimento que o preceito constitucional consagra uma reserva absoluta de jurisdição, que uma interpretação tão rigorosa implicaria a inconstitucionalidade ou, pelo menos, suscitaria dúvidas e questões sobre a constitucionalidade de leis importantes e de práticas de longa tradição, designadamente em matéria registral, de polícia judiciária, de contra-ordenações e de expropriações por utilidade pública, bem como uma alteração profunda da organização judiciária administrativa, para tornar o acesso praticável e a protecção judicial dos cidadãos efectiva – isto é, implicaria uma revolução que só deveria operar-se se tivesse sido inequivocamente assumida pela revisão constitucional.
Passo agora a expor o que penso sobre este problema.
Após a leitura de vários autores sobre esta matéria parece-me que os únicos autores que conseguem olhar com objectividade para o problema são os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira. Efectivamente, com a revisão constitucional de 1989 a CRP vem dizer claramente que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, logo, quando da análise de um caso concreto cheguemos à conclusão que estamos perante uma relação jurídico administrativa, segundo o nº 3 do art. 212º os tribunais competentes serão os tribunais administrativos e não os tribunais judiciais, a não ser claro que a própria Constituição disponha em contrário. Quando o Prof. Vieira de Andrade argumenta no sentido da não inconstitucionalidade das normas que atribuam competência a tribunais judiciais para a resolução de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas fá-lo, parece-me a mim, porque tem consciência da falta de meios para os tribunais administrativos responderem à quantidade de trabalho extra que teriam se todos os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas lhes fossem atribuídos. Pense-se por exemplo no caso das contra-ordenações. Quando digo que os Profs. Freitas do Amaral, Vieira de Andrade e Aroso de Almeida não olham com objectividade para o preceito constitucional é porque fico com a impressão que antes de apreciarem concretamente o disposto no artigo, os Profs. olham primeiro para a realidade, neste caso para a falta de meios e só depois vão interpretar o artigo, tentando dar-lhe um sentido útil e escolhendo o mal menor que é neste caso que os particulares consigam ter uma justiça o mais pronta possível, que só se vai conseguir, à falta de tribunais administrativos suficientes, com o recurso aos tribunais judiciais que são em muito maior número.
O raciocínio que acabo de expor acaba por encontrar apoio no texto dos Profs. Freitas do Amaral e Aroso de Almeida (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição) quando dizem que (“As insuficiências de que ainda padece a rede de tribunais administrativos a resultar da reforma explicam a opção que desde o início foi tomada de não se estender o âmbito da jurisdição administrativa ao contencioso das contra-ordenações. Com efeito, a sua inclusão no âmbito da jurisdição administrativa só parece poder ser equacionada num contexto em que já esteja instalada por todo o território nacional e a funcionar em velocidade cruzeiro uma rede de tribunais administrativos capaz de dar a adequada resposta, sem o risco de gerar disfuncionalidades no sistema. (…) Sem prejuízo de se reafirmar que, a partir do momento em que se consideram criadas as condições que permitam ao contencioso administrativo desempenhar cabalmente a sua função, não se justificará a manutenção de desvios como este ao seu poder de dirimir os litígios de natureza administrativa.”).
Retiro daqui que os Professores Freitas do Amaral e Aroso de Almeida acabam por admitir que o art. 212º nº 3 impõe que a competência para julgar litígios decorrentes de relações jurídicas administrativas seja dos tribunais administrativos. O que não compreendo é de onde os mesmos Professores retiram que o artigo impõe que a competência seja dos tribunais administrativos quando há meios suficientes para tal, mas já não impõe quando não hajam meios suficientes. Os objectivos desta interpretação são bons, pois pretende-se proteger os particulares de uma justiça ineficiente e dar cumprimento ao artigo 20º da CRP. O problema é que este tipo de interpretação dos conceitos constitucionais não pode ser admitida e é aqui que a posição dos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira parece-me mais conforme à Constituição. Efectivamente, se a Constituição impõe que determinado tipo de causas seja atribuída a determinado tipo de tribunais e depois o legislador não cria as condições necessárias para que se dê cumprimento à disposição constitucional o que deve ser invocado é uma inconstitucionalidade por omissão (art. 283º da CRP).
É que este tipo de interpretação com justificação na falta de meios pode levar a considerar conforme a Constituição situações que são completamente inconstitucionais.
Imagine-se por exemplo o caso do número de tribunais em Portugal ser extremamente reduzido e uma lei atribuir por exemplo a Ministério da Justiça a competência para julgar a impugnação de actos administrativos sem possibilidade de recorrer para tribunal pois os tribunais não tinham capacidade para dar resposta a este problema. Esta lei não poderia ser considerada conforme à constituição com base no argumento de que não há tribunais suficientes para resolver os litígios, mesmo que fosse efectivamente verdade. O exemplo parece ridículo, mas no fundo o que o Professor Freitas do Amaral diz em relação ao artigo 212º é que deixará de ser admissível que litígios emergentes de relações jurídicas administrativas sejam atribuídos a tribunais judiciais quando houver tribunais administrativos suficientes. Então o critério utilizado para aferir da constitucionalidade das normas que atribuem a competência destas situações a tribunais judiciais é a da existência ou não de tribunais administrativos suficientes.
Concluo então que o artigo 212º nº 3 impõe que todos os litígios decorrentes de relações jurídicas administrativas sejam da competência dos tribunais administrativos e que não podem ser da competência de tribunais administrativos os litígios decorrentes de relações jurídicas não administrativas.
Acrescento que não concordo com a solução dada pela CRP por ser dificilmente praticável e porque em certas situações até se justifica que sejam os tribunais administrativos a resolver litígios não emergentes de relações jurídicas administrativas e vice-versa. É por exemplo o caso de algumas situações de fronteira em que não se consegue afirmar com certeza se estamos perante uma relação jurídica administrativa ou não, ou nos casos em que seja mais prático e útil atribuir a resolução de certos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas a tribunais judiciais, quando por exemplo várias questões ligadas entre si sejam suscitadas perante um tribunal e a grande maioria seja da competência de um tribunal judicial e apenas uma seja da competência de um tribunal administrativo e não se justifique interromper o processo e enviá-lo a um tribunal administrativo só para que este se pronuncie sobre um ponto específico.
Apesar, de como já referi, não concordar com a solução dada pela Constituição e de achar a posição defendida nomeadamente pelo Prof. Vieira de Andrade como a mais correcta do ponto de vista prático, tenho que aceitar que não pode ser o legislador ordinário a modificar a Constituição e que enquanto o art. 212º da CRP não for alterado, o legislador incorre em inconstitucionalidade por omissão por não criar as condições necessárias a dar cumprimento ao preceito constitucional.

João Lima
Nº16706
Subturma 4

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