quarta-feira, 19 de maio de 2010

Recurso hierárquico necessário ou desnecessário?

O recurso hierárquico necessário ou desnecessário?

A antiga Lei do Procedimento dos Tribunais Administrativos (LPTA) previa nos seus artigos 25º nº1 e 34º a impugnação administrativa necessária ou recurso hierárquico necessário como pressuposto da impugnabilidade contenciosa de actos administrativos. Assim para que um particular pudesse recorrer à via contenciosa para impugnar um acto da Administração que o lesasse nos seus direitos ou interesses teria primeiro que recorrer à via graciosa mediante reclamação ou impugnação administrativa e esperar dentro de determinado prazo uma decisão do superior hierárquico em relação ao acto praticado pela entidade que lhe está infra- ordenada, e só aí poderia recorrer aos tribunais administrativos para fazer valer a sua pretensão. Com a reforma do contencioso administrativo o Código de Processo dos Tribunais Administrativos parece ter afastado pelo artigo 51º e ainda pelos artigos 59º nº4 e 5 este requisito de anterior recurso hierárquico necessário, ao deixar de lhe fazer qualquer referência expressa. Parece ter havido aqui uma intenção expressa do legislador afastar o requisito da definitividade vertical do acto administrativo impugnado contenciosamente. No entanto esta referência expressa mantém-se em algumas leis especiais, parecendo ser nas palavras de M. Aroso de Almeida resultado de “uma opção consciente e deliberada do legislador, que não procedeu aliás à sua revogação”.
Tem sido então discutida pela doutrina e jurisprudência a questão da definitividade vertical do acto administrativo enquanto pressuposto de acto impugnável contenciosamente e da manutenção de um recurso hierárquico necessário, ao menos em determinadas situações. As opiniões têm sido diversas, tendendo a doutrina a entender que já não existe um recurso hierárquico necessário em geral, mantendo-se apenas quando exista referência expressa em lei especial de tal pressuposto de impugnabilidade contenciosa do acto administrativo.
Mário Aroso de Almeida começa por dizer que não é exigido para haver interesse processual, enquanto pressuposto da acção administrativa, que o autor demonstre ter tentado de modo infrutífero obter a remoção do acto que considera ilegal e que o lesa nos seus direitos e interesses, através do recurso à reclamação ou impugnação administrativa. Na ausência de disposição legal expressa (anterior à reforma do contencioso administrativo e não meramente proveniente de regulamento) devemos entender que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem qualquer necessidade de recurso à figura do recurso hierárquico prévio, que deixa assim de ser necessário, embora possa ser útil, nestes casos. No entanto dado que não cabe ao intérprete ou aplicador tomar uma decisão que o legislador não tomou, a de revogação das disposições presente em lei avulsa que prevêem o recurso hierárquico necessário, sempre que tal esteja previsto na lei, as decisões administrativas para serem impugnadas contenciosamente tem que ser primeiro impugnadas por via administrativa, para o superior- hierárquico do órgão que pratica o acto.
Mário Aroso de Almeida entende ainda que uma vez intentada a impugnação administrativa necessária, nos casos em que se encontra expressamente prevista, a via contenciosa a seguir será sempre a via impugnatória, quer a reclamação ou o recurso hierárquico tenham sido objecto de indeferimento expresso ou quer não tenham merecido qualquer resposta por parte do órgão competente para os decidir. Assim é porque a pretensão do particular não se dirige à prática de um acto legalmente devido pela Administração, mas sim à remoção de um acto administrativo de conteúdo positivo que foi ilegalmente cometido. A título de exemplo, o funcionário que foi ilegalmente demitido pretende em princípio a remoção do acto de demissão, para poder recuperar o lugar do qual foi ilegalmente afastado.
O indeferimento ou o decurso do prazo legalmente fixado para que a reclamação ou o recurso hierárquico necessários fossem decididos, sem a emissão de uma decisão limita-se a ter o alcance de abrir o acesso à via contenciosa, nomeadamente impugnatória.
José Vieira de Andrade vem justificar um recurso hierárquico necessário prévio com o fim visado pela lei de evitar intervenções desnecessárias dos tribunais, condicionando o acesso aos tribunais a uma pronúncia, ou oportunidade de pronúncia, prévia da Administração em relação à pretensão impugnatória do particular. Para este autor, e em sentido contrário ao que é defendido pela maioria da doutrina, nomeadamente Vasco Pereira da Silva, a exigência legal do recurso hierárquico prévio não contraria o disposto no artigo 268º nº4 da Constituição da República Portuguesa. Trata-se de um condicionamento legítimo, e não uma restrição, do direito de acção dos particulares contra actos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos, justificado nos termos anteriores uma vez que não impede o exercício posterior da acção contenciosa contra aquele mesmo órgão, quando este se tenha pronunciado de modo autónomo do órgão recorrido ou quando haja acto expresso que decida o recurso. Para além disso defende o autor que os meios de impugnação administrativa quando considerados por lei necessários, suspendem de modo automático a eficácia do acto, são informais e proporcionam inúmeras vantagens, incluindo a de obrigar uma entidade administrativa mais qualificada, porque superior hierarquicamente, a pronunciar-se sobre a situação e por último encontram-se sujeitas a decisão em prazo curto. O juiz contudo deverá dispensar a impugnação administrativa necessária sempre que tal implique, nas circunstâncias do caso concreto, uma restrição intolerável do direito ao recurso contencioso, não só na perspectiva de efectividade substancial da tutela como na de direito a uma decisão em prazo razoável.
Em sentido contrário, e numa posição mais radical, Vasco Pereira da Silva entende o recurso hierárquico prévio como desnecessário face à alteração que ocorreu em virtude da reforma legislativa do contencioso administrativo.
Antes da reforma o autor já se tinha pronunciado pela inconstitucionalidade da figura do recurso hierárquico necessário face ao disposto no artigo 268º nº4 da CRP, pois a inadmissibilidade de recurso contencioso, quando não tenha existido previamente o recurso hierárquico necessário, equivale na uma negação de um direito fundamental que é o acesso aos tribunais administrativos. A distinção feita no âmbito da lei anterior entre recurso hierárquico necessário e facultativo tinha única e exclusivamente a ver com a questão de saber se o acto administrativo era ou não insusceptível de recurso contencioso, o que não faz sentido face à solução consagrada pelo CPTA.
O CPTA afasta de modo inequívoco e definitivo a necessidade de recurso hierárquico, como pressuposto de impugnação contenciosa dos actos administrativos nomeadamente através de: consagração de impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que possa lesar direitos ou interesses legalmente protegidos de particulares ou que seja dotado de eficácia externa, pelo artigo 51º nº1 CPTA (e não apenas dos actos praticados por superiores hierárquicos )e de atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas, pelo artigo 59ºn4 CPTA.
No entendimento de Vasco Pereira da Silva o recurso hierárquico passou a ser desnecessário, mas tornou-se útil. O particular tem agora a possibilidade de escolher entre a utilização prévia de uma garantia graciosa ou recurso hierárquico ou de aceder logo à via de impugnação contenciosa, podendo fazê-lo também quando recorrer previamente à via graciosa.
O autor não concorda com a interpretação restritiva feita por Mário Aroso de Almeida e José Vieira de Andrade no sentido de que só foi revogada a regra geral da existência de recurso hierárquico necessário, constante do CPTA, mas não as inúmeras disposições constantes de lei avulsa que prevêem expressamente o recurso hierárquico necessário como condição da impugnação contenciosa de determinados actos administrativos. Este autor entende que se trata de uma contradição insanável a ideia segundo a qual o recurso hierárquico deixou de ser necessário, mas ainda assim possa continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação. Estaríamos assim perante o nascimento de uma figura conceptual que o autor denomina de “recurso hierárquico desnecessário necessário”. Deve entender-se que as normas constantes de lei especial caducam por falta de objecto, na medida em que a garantia que antes lhe estava nas bases e que deixou de ser um pressuposto processual da impugnação de actos administrativos.
A solução defendida pelo autor seria a seguinte: a revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário, por uma questão de segurança e certeza jurídicas, dado que elas já caducaram nos termos referidos anteriormente; e a generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, eventualmente acompanhadas da fixação de um prazo curto para o exercício da faculdade de impugnação administrativa pelos particulares (30 dias – prazo geral para a prática de actos administrativos de acordo com o artigo 168º nº1 CPA), que apenas teria relevância para a aplicação do regime de suspensão automática da eficácia, até a decisão do recurso hierárquico ou garantia administrativa. Deste modo seriam satisfeitos todos os interesses relevantes em presença; o do particular que passava a gozar de um maior estímulo para utilizar o recurso hierárquico e as garantias administrativas sem nunca ver precludido o respectivo direito de acesso ao tribunal; o da Administração, que passaria a ter em termos mais amplos uma segunda oportunidade, para melhor cumprir a legalidade e realizar o interesse público, podendo satisfazer desde logo as pretensões do particular e pôr termo ao litígio e por último o bom funcionamento do sistema de justiça administrativa pois o eficaz funcionamento das garantias administrativas afastaria da esfera dos tribunais administrativos litígios que poderiam ser previamente resolvidos. Esta solução ideal encontra-se contudo muito longe de ser a solução adoptada pelo nosso legislador, ficando por enquanto apenas na esfera do idealismo, mas podem ser dados maiores passos na resolução legislativa desta questão. O recurso hierárquico é assim desnecessário mas pode revelar-se útil para os particulares que pretendem fazer valer as suas pretensões contra a Administração.
Em conclusão na minha opinião ainda continuam a existir algumas situações de recurso hierárquico necessário, quando a lei o preveja expressamente, sufragando neste aspecto a opinião de Mário Aroso de Almeida. Nas situações em que o recurso hierárquico não seja necessário por revogação expressa operada pelo artigo 51º nº1 CPTA, ainda assim ele pode ser útil dando ao particular a oportunidade de pedir primeiro uma decisão por parte do superior hierárquico do autor do acto administrativo, podendo o autor ter um interesse atendível nesta reclamação ou impugnação administrativa prévia. Ao mesmo tempo permite-se assim libertar os tribunais administrativos, para a resolução de outras questões, de questões que podem ser resolvidas mediante um recurso hierárquico que revogue a decisão que lesa direitos e interesses legítimos do particular tomado por uma outra entidade que se encontra a ele subordinado hierarquicamente.



Célia Sobral
Subturma 10 Nº aluno 16562

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