Antes de mais, importa contextualizar, ainda que resumidamente, o surgimento deste Acórdão para que a compreensão da questão que lhe está subjacente se torne mais clara.
Ora, este acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA) surge na sequência de um recurso perante a decisão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN) que indeferira o recurso apresentado relativamente à sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (TAF).
Contextualizando, uma funcionária da Câmara Municipal da Figueira da Foz fora avaliada com uma nota que aquela considerou injusta e reclamou para o Presidente da Câmara que indeferiu aquela pretensão. A funcionária recorreu aos tribunais, isto é, impugnou a decisão do Presidente que foi no sentido da negação do provimento da reclamação. Como acima se referiu o TCAN decidiu no mesmo sentido que o TAF. Importa referir com que fundamentos foi sustentada esta decisão. O TCAN invocou duas grandes ordens de razões. Primeiro entendeu que esta reclamação interposta pela funcionária teria um carácter meramente facultativo (de acordo com os Artigos 28º nº1 do Decreto-Regulamentar 19-A/04 e 61º nº1 do CPA) na medida em que aquela tinha sido formulada perante o autor do acto reclamado, não se considerando um impulso necessário do particular para aceder aos tribunais. Em segundo lugar, o Tribunal entendeu que o acto administrativo dotado de eficácia externa, susceptível de lesar interesses legalmente protegidos (nos termos do Artigo 51º do CPTA) seria o primeiro acto, o homologatório da avaliação de desempenho.
No entanto, o STA entendeu ser outro o caminho a seguir e que com o surgimento do Artigo 51º nº1 do CPTA se introduziu um novo paradigma de impugnação contenciosa. No entender do STA e na esteira de um outro acórdão de 04/06/2009, existe uma convivência entre a impugnação de actos administrativos lesivos e impugnações administrativas necessárias quando tal resulte de lei expressa, além dos casos de impugnações necessárias previstas em lei anteriores à vigência do CPTA. Este entendimento baseia-se na ideia de que o legislador não quis revogar os preceitos já existentes que postulavam a ideia de que seria necessário para a impugnação contenciosa, uma prévia reclamação ou um recurso para o superior hierárquico, na medida em que caso o quisesse fazer, tê-lo-ia referido em preâmbulo ou expressamente no seu texto.
No caso sub judice no Acórdão o STA acabou por atribuir razão ao autor fundamentando a sua decisão na ideia acima expressa de que seriam admissíveis impugnações administrativas necessárias quando tal resultasse de lei expressa, o que no caso concreto sucedia (Artigo 13º g) e h) da Lei nº 10/04). Posto isto, entendia o Supremo que o decreto regulamentador que dispunha que o “interessado pode apresentar reclamação” cede perante a lei que obriga a essa reclamação, na medida em que um “decreto regulamentador não pode dispor coisa diferente do que lei regulamentada”. Ademais recorreu-se à ideia também já inculcada acima de que não ocorreu disposição expressa de revogação que pusesse em causa a necessidade da reclamação. Concedeu-se provimento ao recurso.
Ora, este acórdão suscita a discussão em torno da existência ou não de recursos (e reclamações) hierárquicos necessários no nosso ordenamento jurídico. Recorrendo à primordial fonte de Direito, a Lei, verificamos que o Artigo 51º nº1 do CPTA não é claro e explícito relativamente a esta questão, apenas postulando a ideia de que “são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa”. Ora, não sendo manifesto o sentido que o Artigo referido inculca no que diz respeito ao recurso hierárquico necessário, cabe recorrer à Doutrina. Comecemos por referir a posição sustentada pelo Professor Mário Aroso de Almeida. Este autor defende uma ideia semelhante à do Acórdão acima referido. O Professor, apesar de entender que das soluções consagradas nos Artigos 51º e 59º nºs 4 e 5 decorre a ideia de que para se alcançar a via contenciosa é necessário esgotar as vias de impugnação administrativa, entende que o CPTA não pode ter o sentido de revogar as disposições legais especiais que instituem impugnações administrativas necessárias. De acordo com o entendimento do autor, apenas quando lei expressa o determine, não pode ocorrer revogação das leis especiais que postulam o recurso hierárquico necessário. O Professor rejeita ainda o entendimento daqueles que defendem a inconstitucionalidade de impugnações necessárias advinda da Revisão Constitucional de 1989 que retirou a referência à definitividade dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa do então Artigo 284º nº4 (actual Artigo 268º nº 4) com o fundamento de que tanto o Tribunal Constitucional como o STA entendem que não cabe à Lei Fundamental estabelecer os pressupostos da impugnação de actos administrativos no sentido de afirmar que só serão legítimos se ocorrer expressa previsão constitucional.
Daqui fazemos a ponte para a posição diametralmente oposta do Professor Vasco Pereira da Silva. O Professor, ainda antes da existência do Artigo 51º nº1 tal qual está hoje redigido, entendia que com a revisão constitucional de 1989 a defesa da existência de recursos hierárquicos necessários tornava-se absurda, aliás, este autor entendia que era incompreensível que a jurisprudência não tomasse posição no sentido de se pronunciar pela inconstitucionalidade de disposições legais que estabelecessem o recurso hierárquico necessário. A jurisprudência, de acordo com o entendimento do autor, resguardava-se nos casos em que o particular recorria à impugnação administrativa e depois ainda que indeferido o pedido, podia recorrer aos tribunais, sendo que a procedência de recurso hierárquico teria como efeito o deferimento do prazo para interposição do recurso aos tribunais, quando o problema na realidade se colocava relativamente aos casos em que não utilizando o recurso hierárquico necessário se precludia o direito do particular a recorrer às impugnações contenciosas. Ocorria assim, uma violação da garantia constitucional de recurso contencioso do Artigo 268º nº4 da Lei Fundamental. Se antes da reforma, o professor sustentava a ocorrência de violação dos Princípios da Plenitude da tutela dos direitos dos particulares (Artigo 268º nº4), da separação entre Administração e Justiça (Artigos 114º, 205º e 266º) da desconcentração administrativa (Artigo 267º nº2), e da efectividade da tutela (Artigo 268º nº4), hoje em dia com o surgimento de uma disposição legal que parece afastar a ideia (ainda que não peremptoriamente) da necessidade de um recurso hierárquico, a posição do autor sai reforçada. O professor entende, hoje em dia, que o Artigo 51º nº1 consagra a impugnabilidade contenciosa de actos administrativos que lesem direitos de particulares o que implica que para se autonomamente impugnar os actos dos subalternos bem como os dos superiores hierárquicos não seja necessário a interposição de uma garantia administrativa, o que actualmente não é nem expressa nem implicitamente inculcado por qualquer lei (como fazia anteriormente a LEPTA). O autor entende ainda que o Artigo 59º nº4 quando atribui um efeito suspensivo ao prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas garante aqui ao particular uma prévia “segunda opinião”. O professor entende ainda, recorrendo ao Artigo 59º nº5 (que postula a ideia de que o benefício do prazo de impugnação contenciosa por recurso à via administrativa, não prejudica o recurso aos Tribunais) que se afasta inequivocamente a necessidade do recurso hierárquico na medida em que doravante é sempre possível ao particular recorrer sem mais aos Tribunais.
Cabe tomar posição nesta contenda. Parece-nos que com a consagração no Artigo 268º nº4 de que é garantido aos particulares a tutela jurisdicional efectiva se inculca a ideia de que a Constituição veda a interposição de obstáculos ao recurso aos tribunais por parte dos administrados. Ademais, o Artigo 51º nº1 vem concretizar isto mesmo no CPTA. Parece-nos, no entanto, que não ocorre nestes preceitos, bem como no Artigo 59º nº5, um afastamento inequívoco da necessidade do recurso hierárquico (ideia sustentada pelo Regente). Entendemos que a lei ordinária poderia ter sido mais clara na concretização do preceito constitucional. Ademais, a ideia da existência de que um recurso hierárquico necessário serve como modo de desobstrução dos tribunais pode não proceder por duas ordens de razões. Primeiro, não é garantido que o superior hierárquico (nos recursos) tome posição diferente daquele que tomou a primeira decisão, isto é, o superior hierárquico pode limitar-se a confirmar o primeiro acto administrativo. O mesmo sucede com as reclamações nas quais a possibilidade de mudança de posição é ainda mais ténue, tendo em conta que o órgão ou o titular do órgão que decide a impugnação administrativa é o mesmo do do primeiro acto (como acontece no Acórdão analisado). Em segundo lugar, a desobstrução dos tribunais é um objectivo a alcançar, mas quando este se coloca no caminho do imediato interesse do particular, este parece levar a melhor. Explicando melhor, o valor da celeridade da justiça não pode prevalecer quando estão em causa interesses de particulares que precisam no imediato de ser salvaguardados, algo que não sucederia com a existência de recursos hierárquicos necessários. Para além disto, é de referir que apesar de não ter ocorrido uma revogação expressa das disposições legais especiais que postulam o recurso hierárquico necessário, só o facto de a Constituição postular o acesso à tutela jurisdicional efectiva ao particular já parece carimbar de inconstitucionalidade superveniente as disposições que postulavam o recurso necessário à data da revisão constitucional. Posto isto, parece-nos que a figura do recurso hierárquico necessário não vigora no nosso ordenamento jurídico.
Bibliografia:
Almeida, Aroso de - "O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos", Almedina, Coimbra, 2005
Silva, Vasco Pereira da – "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", Almedina, Coimbra, 2009.
"Em Busca do Acto Administrativo Perdido", Almedina, Coimbra, 1996.
"Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo", Almedina, Coimbra, 2000.
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