quinta-feira, 13 de maio de 2010

Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 0701/2009.

Antes de mais, importa contextualizar, ainda que resumidamente, o surgimento deste Acórdão para que a compreensão da questão que lhe está subjacente se torne mais clara.

Ora, este acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA) surge na sequência de um recurso perante a decisão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN) que indeferira o recurso apresentado relativamente à sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (TAF).

Contextualizando, uma funcionária da Câmara Municipal da Figueira da Foz fora avaliada com uma nota que aquela considerou injusta e reclamou para o Presidente da Câmara que indeferiu aquela pretensão. A funcionária recorreu aos tribunais, isto é, impugnou a decisão do Presidente que foi no sentido da negação do provimento da reclamação. Como acima se referiu o TCAN decidiu no mesmo sentido que o TAF. Importa referir com que fundamentos foi sustentada esta decisão. O TCAN invocou duas grandes ordens de razões. Primeiro entendeu que esta reclamação interposta pela funcionária teria um carácter meramente facultativo (de acordo com os Artigos 28º nº1 do Decreto-Regulamentar 19-A/04 e 61º nº1 do CPA) na medida em que aquela tinha sido formulada perante o autor do acto reclamado, não se considerando um impulso necessário do particular para aceder aos tribunais. Em segundo lugar, o Tribunal entendeu que o acto administrativo dotado de eficácia externa, susceptível de lesar interesses legalmente protegidos (nos termos do Artigo 51º do CPTA) seria o primeiro acto, o homologatório da avaliação de desempenho.

No entanto, o STA entendeu ser outro o caminho a seguir e que com o surgimento do Artigo 51º nº1 do CPTA se introduziu um novo paradigma de impugnação contenciosa. No entender do STA e na esteira de um outro acórdão de 04/06/2009, existe uma convivência entre a impugnação de actos administrativos lesivos e impugnações administrativas necessárias quando tal resulte de lei expressa, além dos casos de impugnações necessárias previstas em lei anteriores à vigência do CPTA. Este entendimento baseia-se na ideia de que o legislador não quis revogar os preceitos já existentes que postulavam a ideia de que seria necessário para a impugnação contenciosa, uma prévia reclamação ou um recurso para o superior hierárquico, na medida em que caso o quisesse fazer, tê-lo-ia referido em preâmbulo ou expressamente no seu texto.

No caso sub judice no Acórdão o STA acabou por atribuir razão ao autor fundamentando a sua decisão na ideia acima expressa de que seriam admissíveis impugnações administrativas necessárias quando tal resultasse de lei expressa, o que no caso concreto sucedia (Artigo 13º g) e h) da Lei nº 10/04). Posto isto, entendia o Supremo que o decreto regulamentador que dispunha que o “interessado pode apresentar reclamação” cede perante a lei que obriga a essa reclamação, na medida em que um “decreto regulamentador não pode dispor coisa diferente do que lei regulamentada”. Ademais recorreu-se à ideia também já inculcada acima de que não ocorreu disposição expressa de revogação que pusesse em causa a necessidade da reclamação. Concedeu-se provimento ao recurso.

Ora, este acórdão suscita a discussão em torno da existência ou não de recursos (e reclamações) hierárquicos necessários no nosso ordenamento jurídico. Recorrendo à primordial fonte de Direito, a Lei, verificamos que o Artigo 51º nº1 do CPTA não é claro e explícito relativamente a esta questão, apenas postulando a ideia de que “são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa”. Ora, não sendo manifesto o sentido que o Artigo referido inculca no que diz respeito ao recurso hierárquico necessário, cabe recorrer à Doutrina. Comecemos por referir a posição sustentada pelo Professor Mário Aroso de Almeida. Este autor defende uma ideia semelhante à do Acórdão acima referido. O Professor, apesar de entender que das soluções consagradas nos Artigos 51º e 59º nºs 4 e 5 decorre a ideia de que para se alcançar a via contenciosa é necessário esgotar as vias de impugnação administrativa, entende que o CPTA não pode ter o sentido de revogar as disposições legais especiais que instituem impugnações administrativas necessárias. De acordo com o entendimento do autor, apenas quando lei expressa o determine, não pode ocorrer revogação das leis especiais que postulam o recurso hierárquico necessário. O Professor rejeita ainda o entendimento daqueles que defendem a inconstitucionalidade de impugnações necessárias advinda da Revisão Constitucional de 1989 que retirou a referência à definitividade dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa do então Artigo 284º nº4 (actual Artigo 268º nº 4) com o fundamento de que tanto o Tribunal Constitucional como o STA entendem que não cabe à Lei Fundamental estabelecer os pressupostos da impugnação de actos administrativos no sentido de afirmar que só serão legítimos se ocorrer expressa previsão constitucional.

Daqui fazemos a ponte para a posição diametralmente oposta do Professor Vasco Pereira da Silva. O Professor, ainda antes da existência do Artigo 51º nº1 tal qual está hoje redigido, entendia que com a revisão constitucional de 1989 a defesa da existência de recursos hierárquicos necessários tornava-se absurda, aliás, este autor entendia que era incompreensível que a jurisprudência não tomasse posição no sentido de se pronunciar pela inconstitucionalidade de disposições legais que estabelecessem o recurso hierárquico necessário. A jurisprudência, de acordo com o entendimento do autor, resguardava-se nos casos em que o particular recorria à impugnação administrativa e depois ainda que indeferido o pedido, podia recorrer aos tribunais, sendo que a procedência de recurso hierárquico teria como efeito o deferimento do prazo para interposição do recurso aos tribunais, quando o problema na realidade se colocava relativamente aos casos em que não utilizando o recurso hierárquico necessário se precludia o direito do particular a recorrer às impugnações contenciosas. Ocorria assim, uma violação da garantia constitucional de recurso contencioso do Artigo 268º nº4 da Lei Fundamental. Se antes da reforma, o professor sustentava a ocorrência de violação dos Princípios da Plenitude da tutela dos direitos dos particulares (Artigo 268º nº4), da separação entre Administração e Justiça (Artigos 114º, 205º e 266º) da desconcentração administrativa (Artigo 267º nº2), e da efectividade da tutela (Artigo 268º nº4), hoje em dia com o surgimento de uma disposição legal que parece afastar a ideia (ainda que não peremptoriamente) da necessidade de um recurso hierárquico, a posição do autor sai reforçada. O professor entende, hoje em dia, que o Artigo 51º nº1 consagra a impugnabilidade contenciosa de actos administrativos que lesem direitos de particulares o que implica que para se autonomamente impugnar os actos dos subalternos bem como os dos superiores hierárquicos não seja necessário a interposição de uma garantia administrativa, o que actualmente não é nem expressa nem implicitamente inculcado por qualquer lei (como fazia anteriormente a LEPTA). O autor entende ainda que o Artigo 59º nº4 quando atribui um efeito suspensivo ao prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas garante aqui ao particular uma prévia “segunda opinião”. O professor entende ainda, recorrendo ao Artigo 59º nº5 (que postula a ideia de que o benefício do prazo de impugnação contenciosa por recurso à via administrativa, não prejudica o recurso aos Tribunais) que se afasta inequivocamente a necessidade do recurso hierárquico na medida em que doravante é sempre possível ao particular recorrer sem mais aos Tribunais.

Cabe tomar posição nesta contenda. Parece-nos que com a consagração no Artigo 268º nº4 de que é garantido aos particulares a tutela jurisdicional efectiva se inculca a ideia de que a Constituição veda a interposição de obstáculos ao recurso aos tribunais por parte dos administrados. Ademais, o Artigo 51º nº1 vem concretizar isto mesmo no CPTA. Parece-nos, no entanto, que não ocorre nestes preceitos, bem como no Artigo 59º nº5, um afastamento inequívoco da necessidade do recurso hierárquico (ideia sustentada pelo Regente). Entendemos que a lei ordinária poderia ter sido mais clara na concretização do preceito constitucional. Ademais, a ideia da existência de que um recurso hierárquico necessário serve como modo de desobstrução dos tribunais pode não proceder por duas ordens de razões. Primeiro, não é garantido que o superior hierárquico (nos recursos) tome posição diferente daquele que tomou a primeira decisão, isto é, o superior hierárquico pode limitar-se a confirmar o primeiro acto administrativo. O mesmo sucede com as reclamações nas quais a possibilidade de mudança de posição é ainda mais ténue, tendo em conta que o órgão ou o titular do órgão que decide a impugnação administrativa é o mesmo do do primeiro acto (como acontece no Acórdão analisado). Em segundo lugar, a desobstrução dos tribunais é um objectivo a alcançar, mas quando este se coloca no caminho do imediato interesse do particular, este parece levar a melhor. Explicando melhor, o valor da celeridade da justiça não pode prevalecer quando estão em causa interesses de particulares que precisam no imediato de ser salvaguardados, algo que não sucederia com a existência de recursos hierárquicos necessários. Para além disto, é de referir que apesar de não ter ocorrido uma revogação expressa das disposições legais especiais que postulam o recurso hierárquico necessário, só o facto de a Constituição postular o acesso à tutela jurisdicional efectiva ao particular já parece carimbar de inconstitucionalidade superveniente as disposições que postulavam o recurso necessário à data da revisão constitucional. Posto isto, parece-nos que a figura do recurso hierárquico necessário não vigora no nosso ordenamento jurídico.

Bibliografia:

Almeida, Aroso de - "O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos", Almedina, Coimbra, 2005

Silva, Vasco Pereira da – "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", Almedina, Coimbra, 2009.

"Em Busca do Acto Administrativo Perdido", Almedina, Coimbra, 1996.

"Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo", Almedina, Coimbra, 2000.

Trabalho realizado por Bruno Antunes, nº 16528, subturma 10.

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